“Mas o ponto alto da conversa, sem dúvida alguma, foi quando Zeca foi questionado se ainda apostava no jogo do bicho. ‘É claro. Outro dia coloquei 100 reais e ganhei 1.800. Ganho quase toda semana e distribuo o dinheiro pro cozinheiro, pro motorista, pra todo mundo. Já ganhei mais de 10.000 reais num só jogo’. Questionado, então, se era a favor da liberação da prática, Zeca Pagodinho respondeu em tom de surpresa: ‘É ilegal?’.” Esse trecho foi retirado do portal Aventuras na História sobre uma entrevista que Zeca Pagodinho cedeu à Veja Rio, no ano de 2020 e que já viralizou algumas vezes na internet. O boêmio cantor tem o jogo do bicho tão intrínseco em seu cotidiano que, tendo sido sarcástico ou não, sua réplica diz muito sobre essa cultura aqui no Brasil. O bicho não só é totalmente normalizado como também virou cultural. Mas enquanto aqui na Paraíba ou em outros estados é difícil vermos notícias relacionadas à contravenção penal, o jogo de azar não é nada inofensivo no estado do Rio de Janeiro, onde é diretamente associado a milícias, ao tráfico de drogas, estelionato e basicamente uma bela cartela que contém tantos crimes quanto animais ilustrados.
Se você for como eu, não deve ter muito conhecimento do jogo do bicho para além disso que acabo de falar, sem muitos detalhes. Mas o quadro mudou quando sentei no sofá e comecei a assistir Vale o Escrito, série idealizada pelo jornalista Fellipe Awi e narrada por Pedro Bial. Disponível no streaming Globoplay e dividida em sete episódios, a produção mergulha na história da contravenção na capital fluminense a partir de núcleos familiares dos bicheiros mais relevantes da história, expondo como surgiu, de que forma virou uma febre e como implica diretamente no cenário político do país. E o mais impressionante da série não é seu caráter investigativo ou ainda sua narrativa envolvente: o jogo de aposta, ou “loteria popular”, é visto de forma tão comum no Rio que seus personagens principais, contraventores de ficha sujíssima envolvidos, por exemplo, em assassinatos, topam não apenas participar da série como também cedem entrevistas de horas de duração, expondo amigos e, especialmente, inimigos.
Mais do que falar sobre a prática ilegal em si, a série explora os nomes e sobrenomes envolvidos direta ou indiretamente no cenário e suas vivências mafiosas, patriarcais e luxuosas. Dois nomes de destaque são as irmãs gêmeas Shanna e Tamara Garcia, inimigas mortais (no sentido praticamente literal), que disputam o legado na contravenção deixado pelo pai Maninho Garcia, assassinado em 2004. Ao trazer à tona essa versão brazuca de Game of Thrones, onde ao invés de batalharem por tronos em reinos muito distantes com dragões, famílias disputam territórios de atuação e a patronagem de escolas de samba no Rio de Janeiro com avestruzes, camelos, vacas, coelhos e afins como coadjuvantes. Vale o Escrito é uma produção riquíssima em detalhes e, a cada episódio que passava, eu repetia mentalmente a máxima “o Brasil não é para amadores”.
E talvez não seja errada a impressão de que o Rio de Janeiro seja comandado por bicheiros das famílias Garcia e de Andrade, com personagens que são amigos íntimos de outras famílias relevantes no quadro político brasileiro, a exemplo da linhagem Bolsonaro. Entre as mortes listadas na produção, um episódio investiga diretamente a da vereadora Marielle Franco e como o crime teria o envolvimento direto destes personagens.
Por mais que parte da nova geração de herdeiros da contravenção não queira continuar o legado regado a dinheiro e sangue, a cada dia que passa a guerra deixa mais vítimas no Rio. A história está longe de acabar e, caso você se interesse, além da produção para streaming há também a versão podcast homônima e já foi anunciada também uma segunda temporada pela Globloplay, prevista para estreia em 2025.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 07 de fevereiro de 2024.