(Nas próximas semanas, comentarei alguns dos indicados à categoria de Melhor Filme no Oscar 2024. Alguns deles, como Barbie, já foram tema dessa coluna antes das nomeações, então você me dê licença para falar apenas sobre os inéditos, está bem?)
Se um filme nos apresenta um problema, ele nos apresenta também a solução, certo? Um conflito e o resultado, um crime e o culpado. É, não necessariamente. Um final aberto pode ser frustrante e até desnecessário – assim como um filme que subestima a audiência e explica demais (Cof! Cof! – Saltburn – Cof! Cof!). Dosar a mão ao expor fatos e jogar com as expectativas do público sem mostrar a solução é algo que poucos conseguem alcançar. Entre estas pessoas está a diretora e roteirista Justine Triet acompanhada de seu longa Anatomia de uma Queda (2023).
Com cinco indicações ao Oscar e uma Palma de Ouro conquistada em Cannes, o filme está em cartaz nos cinemas de João Pessoa e, entre os indicados à estatueta de ouro, é um dos que mais merece ser visto e revisto nas telonas. E detalhe, é uma daquelas obras que quanto menos você sabe, melhor para a experiência. Então, se você não conhece, atenha-se a essas informações da trama: Sandra (Sandra Hüller) está em casa, seu marido Samuel (Samuel Theis) está trabalhando no andar superior, e Daniel (Milo Machado Graner), filho do casal, sai para passear com o cachorro Snoop (Messi; ele também merece os créditos originais). Pouco tempo depois, o garoto retorna e encontra seu pai morto na parte externa de casa, aparentemente vítima de uma queda. O filme mostra os processos para entender o que aconteceu, como aconteceu e se foi um assassinato, acidente ou suicídio.
Difícil não se lembrar de 12 Homens e uma Sentença assistindo Anatomia de uma Queda. Ainda que o filme de 1957 seja mais “minimalista” e enclausurado, ambos nos colocam imersos na experiência, analisando cada evidência e nos mantendo inevitavelmente na posição de julgadores. Quando indaguei a uma amiga o que achou do filme enquanto profissional do Direito, ela respondeu que ainda mais investida no filme estava uma colega perita criminal da polícia civil e seus companheiros. Como toda boa obra subjetiva, o longa tem essa característica de trazer camadas reveladas de acordo com a vivência do público.
Por exemplo: em certo momento da trama, o casal discute na cozinha de casa e ali começamos a notar um jogo de inversão dos papéis de gênero. Temos um pai que age de acordo com as expectativas e normas sociais ditas para uma mãe, e a mãe com atitudes tidas como normais perante um pai e absurdas quando o contrário. Foi nesse instante que todo o meu malabarismo argumentativo para defender Sara começou a cair. Enquanto me agarrei a esse lado, a perita criminal observou um outro, a amiga advogada outro e o amigo escritor pensou sobre a complexidade de ser um autor de autoficção e todo o embaralho que existe entre vida e obra.
A forma brilhante de Anatomia de uma Queda apresentar sua história vem com um roteiro original forte (uma das categorias disputadas pelo filme no Oscar) entregue por um elenco potente – especialmente o cão Messi, “cãovenhamos”. Em vídeo publicado no YouTube, sua adestradora mostra como foi o processo de ensinar um truque específico ao cachorro, que em uma das cenas mais angustiantes do filme entra em colapso após ingerir uma cartela de remédios. Fui tão convencida pela atuação que precisei desviar o olhar, pensando, revoltada, que haviam dopado o cachorro só para aquele momento. Mas não. Foi um adestramento! Detalhe: Messi venceu o prêmio Palme Dog em Cannes, em 2023, categoria alternativa voltada para atuação canina no cinema. Todo o elenco merecia seu parágrafo próprio, mas acredito que são observações mais óbvias tendo em vista a entrega, especialmente do fictício núcleo familiar, em seus papéis.
Anatomia de uma Queda se apresenta, de forma inteligente e eficaz, como uma zona de neutralidade onde fatos são expostos e teorias são desenhadas. É um longa dramático, imprevisível, metódico, cru. Vou aproveitar esses adjetivos para puxar uma analogia: assistir Anatomia de uma Queda é como acompanhar uma reforma em casa. A quebradeira e as marteladas tornam tudo caótico e, até que cada pedaço passe pela fase de acabamento, preenchemos lacunas tentando entender o processo. E independente de como tenha sido, o resultado está ali, ainda que estivéssemos às cegas perante parte essencial do andamento.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de fevereiro de 2024.