A premiação mais aguardada de Hollywood aconteceu no último domingo e veio com poucas surpresas, uma porção de momentos virais e uma lista definitiva dos - teoricamente - grandes filmes de 2023. Antes de, talvez, pular para outro assunto nas próximas colunas, hoje escrevo sobre uma dessas “poucas surpresas” da 96ª cerimônia do Oscar: Ficção Americana, obra que levou o prêmio de melhor roteiro adaptado.
A grata surpresa não é porque é um roteiro fraco (longe disso!) mas sim porque, apesar de ter grandes chances, disputava ao lado de alguns dos queridinhos do ano, como Oppenheimer e Pobres Criaturas, e títulos fortes como Barbie e Zona de Interesse. Completamente diferentes entre si, cada título tem uma pauta para chamar de sua (liberdade feminina, capitalismo…) e para o inteligente Ficção Americana esta pauta é a racial. Baseado no romance de Percival Everett intitulado Eraser (2001), o filme satiriza as vivências de Thelonious “Monk” (Jeffrey Wright), um intelectual professor e autor estadunidense, abordando expectativas que nele são depositadas, frustrações com o mercado literário e com seu ciclo de relacionamentos. Ah, e ele é um homem preto. E esse fator genético parece ditar toda sua existência.
Monk é um autor de ficção que constantemente encontra seus livros na prateleira de “estudos afro-americanos”, mesmo nenhum deles se enquadrando nessa categoria. Entre todas as rasteiras literárias que leva, a gota d’água foi receber o feedback de uma editora que afirmou não querer publicar seu livro pois não era “negro o suficiente”. Ele então decide escrever um livro-protesto com forma de piada, uma escrita fraca e vazia, repleta de estereótipos e que atende às expectativas da sociedade branca sobre como deve ser uma obra escrita por alguém preto. O que era para ser uma grande piada, acaba de fato sendo exatamente o que as editoras, o público e Hollywood gostariam.
O livro Eraser serviu como uma resposta ácida para o sucesso de obras como Push (1996), que posteriormente foi adaptada para as telonas e recebeu o título de Preciosa - Uma História de Esperança (de 2009, que levou o mesmo Oscar de roteiro adaptado) e essa essência foi bem aproveitada no longa. Enquanto o personagem de Monk nega ver “cor” em algumas situações, ele percebe o tratamento diferenciado (para o lado negativo) que recebe em sua vida cotidiana e, ironicamente, como sua classe social perpetua outros estereótipos vinculados à sua raça (por exemplo, ter uma mulher negra como empregada da casa há anos e acolhê-la como “parte da família”).
Ficção Americana usa a metalinguagem da escrita criativa, da criação de roteiro e de adaptações cinematográficas para brincar com a audiência e entregar uma comédia que cutuca as feridas certas. A direção e o roteiro são de Cord Jefferson, um dos autores da série Watchmen (2019), e além de Jeffrey Wright, o elenco é formado por nomes como Issa Rae (Insecure), Leslie Uggams (Raízes) e Sterling K. Brown (This Is Us). Durante o discurso de aceitação do prêmio, Jefferson comentou que – quem diria? – o roteiro foi diversas vezes menosprezado, e reforçou a importância que é a indústria de Hollywood dar mais espaço para novos e promissores criativos, e que ao invés de investir 200 milhões de dólares em um projeto, escolham também investir 10 milhões em 20 produções diferentes, pois “os próximos Scorseses, Gretas e Nolans estão por aí”.
Pensei numa adaptação da adaptação da adaptação: “Ficção Nordestina”, a triste realidade onde autores nordestinos de novela só queriam escrever obras sobre qualquer coisa. Eles se veem constantemente negados por grandes produções televisivas e, de forma irônica, empacam um texto sobre o justiceiros do Sertão, com sangue, suor e sépia, em um grande serviço de streaming. Qualquer semelhança é mera coincidência! Aproveita e coloca na tua lista: o título está disponível no Prime Video -- Ficção Americana, digo!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 13 de março de 2024.