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#72 A obra-prima de 2020

publicado: 11/11/2020 09h00, última modificação: 11/11/2020 09h09
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‘The Last of Us 2’ conseguiu encarar de frente os preconceitos da comunidade gamer - Foto: Sony/Divulgação

tags: The last of us , The last of us parte 2 , Games , Gi ismael , Gi com tônica

Devo avisar, o texto a seguir contém spoilers do game The Last of Us - Parte 2.

Dentre os sete bilhões de habitantes deste pequeno Planeta Azul, existem possivelmente milhões de pessoas que têm a tendência de fincar as garras nos antigos clássicos para invalidação de obras das gerações posteriores. Isso vale para livros, discos, filmes e, claro, jogos de videogame. Agradeço por ser uma pessoa maleável: entendo que não é porque algo é antigo que é necessariamente bom (para o meu gosto) e também o contrário. Sem preciosismos em excesso. Por isso, quando lançado em 2013, The Last of Us me pegou de jeito e automaticamente coloquei o título no topo da lista dos melhores games que joguei ao longo de minha vida. Inquestionavelmente arrebatador, unanimidade de 5 estrelas entre gamers. A história de zumbis carregada de drama que trazia o sorumbático Joel e a doce jovem Ellie, uma garota imune ao vírus, mostrou-se um espetáculo de jogabilidade, roteiro, gráficos, cinematografia e, principalmente, narrativa.

Sete anos depois, a produtora Naughty Dog finalmente lança no mercado, em meio à pandemia, a continuação The Last of Us - Parte 2. Dá para imaginar como estavam as minhas expectativas e digo com tranquilidade: nunca elas foram tão superadas assim. Te digo ainda que elas foram superadas com folga, superadas sem esforço.

Sem saber o que aconteceria no jogo, mastiguei e degluti cada pedacinho, dos mais dramáticos aos mais frustrantes. A morte de Joel é algo que me assombra até hoje, dois meses depois de ter terminado o game. A propósito, isso doeu diferente nos gamers incels, os coitados não aguentaram ver macho alfa sendo morto por uma garota (Abby). Nem ter que jogar com essa garota e muito menos um romance lésbico entre outras duas personagens (Ellie e Dina) sem um pingo de sexualização, somando ainda aqui na história um personagem central que é trans (Lev). Até a suposta falta de realismo de uma mulher musculosa e a "baixa feminilidade" foi criticada pela macharada, tu crê?

Quem realmente tem sensibilidade (tanto emocional quanto artística), compreende entretanto que The Last of Us nunca foi sobre zumbis. O pós-apocalipse é mero cenário para o real foco do game que é a complexidade e volatilidade de nós, seres humanos. Sentimos proximidade e empatia por Joel no início da jornada pois conhecemos sua história. A perda da filha, a aventura solitária. Relativizamos muitas mortes cometidas por ele, classificando-as como "casualidades". É na continuação, quando o personagem é brutalmente assassinado, quando vem a possibilidade de refletirmos sobre os atos do texano anos antes e como aquela mesma jornada que acompanhamos foi extremamente destrutiva. É difícil de aceitar, mas a morte dele faz muito sentido -- e jus -- à narrativa.

Foi golpe baixo colocar Joel para morrer de forma tão cruel, com menos de duas horas de jogo, pelas mãos da personagem que salvamos minutos antes? Demais. Mas não gratuito. O incômodo, raiva e frustrações são todos propositais e o fato de que essa obra teve exatamente o impacto que desejou passar é brilhante. E veja que complexo é jogarmos com a vilã e a mocinha no mesmo jogo de terceira pessoa? E como nossas definições de "vilã" e de "mocinha" são colocadas em cheque com o passar dos dias jogados?

Ambientes tóxicos criam pessoas tóxicas. Quando tudo que se ensina é violência e guerra, é difícil desviar do caminho. Abby foi fruto disso. Seu pai, fonte de carinho e amor inesgotável, foi morto pelas mãos de um homem aleatório. Homem esse que arrancou da humanidade sobrevivente a possibilidade de uma cura. Que massacrou dezenas de médicos e enfermeiros enquanto praticavam seus ofícios. Matamos todos sem pensar em suas próprias histórias. Inclusive, essa é uma preocupação recorrente do game mais recente: os nomes dos NPCs não se repetem; visitamos pessoas que matamos na linha do tempo paralela e fazemos amizade com cães assassinados por nós logo depois enquanto jogamos com Ellie, que mostrou-se fruto do mesmo desgastante contexto da violência cega.

A grande ironia final é que, não fosse a sedenta busca de Ellie pela vingança de Joel, Abby estaria morta na praia. Naquele momento, entre sangue e sal, Ellie lembrou de sua essência. Talvez desistir seja o sentimento mais humano que possamos ter.

Muita gente não consegue lidar ou compreender essa carga emocional do game e esse é o único motivo pelo qual consigo pensar no porquê de tantas pessoas não terem gostado da obra. Ta aí outra coisa que The Last of Us - Parte 2 conseguiu fazer bem: escancarar o machismo, a misoginia e a LGBTfobia da comunidade gamer (algo que nem é tão difícil assim).

*coluna publicada originalmente na edição impressa de 11 de novembro de 2020.