A Netflix anunciou que, em 2021, lançaria um longa-metragem original por semana e assim tem sido. É fato que a produção industrial de filmes geralmente traz mais quantidade do que qualidade, mas bons títulos já saíram nessa remessa: Pieces of a Woman, Eu me Importo e Malcolm & Marie são alguns deles.
Pieces of a Woman é um drama escrito por Kata Wéber e dirigido por Kornél Mundruczó, cineastas húngaros que trabalharam juntos em produções como Deus Branco (2014) e Lua de Júpiter (2017). Esse é o tipo de filme que é mais bem aproveitado quando você assiste sem ler a sinopse, portanto, se você quiser ter essa experiência fílmica de forma inédita, pode pular para o parágrafo seguinte. Pieces of a Woman é um forte relato de uma situação traumática na vida de um jovem casal, vivido por Shia LaBeouf e Vanessa Kirby; na verdade, talvez uma das situações mais tristes que a vida adulta pode trazer: a perda de um filho. Não é um filme de fácil digestão justamente por suas doses fortes de realismo, como o primeiro ato, quase que por completo, em plano sequência mostrando o parto domiciliar e o nascimento da triste implosão de um relacionamento.
Temática parecida de relacionamento em turbulência, abordagens bem diferentes: em uma hora e meia de filme, amor e metalinguagem cinematográfica são servidos ao público em majestoso preto e branco. Malcolm & Marie, de Sam Levinson (Euphoria), apresenta uma madrugada na vida de um casal formado por um cineasta (John David Washington, protagonista de Tenet e Infiltrado na Klan) que acaba de fazer uma estreia bem sucedida e a sua namorada (Zendaya, de Euphoria e Homem-Aranha: De Volta ao Lar), uma atriz que se vê no papel de esposa-troféu e musa inspiradora. Enquanto aguardam que as primeiras críticas sejam publicadas, os dois soltam frustrações e insatisfações que sentem por si e pelo outro. Com os únicos dois atores em cena durante todo o filme, Zendaya e Washington não precisam de mais ninguém para preencher o quarto.
Durante o filme, eu escrevia apontamentos e logo tive que largar a caneta ao perceber que aquela era justamente uma das críticas do longa. Essa incessante busca por análises e atribuições de significados às vezes deixa para segundo plano a experiência que nos é entregue. Me lembrou quando assisti à estreia de Bacurau onde fizeram parte da sessão o diretor Juliano Dornelles e parte do elenco. No momento das perguntas, alguém da plateia questionou se o fato de todas as cenas de sexo do filme trazerem mulheres em cima de seus parceiros era uma metáfora para o poder feminino, ao passo que o diretor respondeu: “Teve isso? Nem percebi. Na verdade, essa era só a forma mais fácil de mostrar os personagens na cena, como naquele capim alto”. Às vezes é só sobre o “só”. Malcolm & Marie é bastante perspicaz ainda quando traz questionamentos como “o fato de Barry Jenkins não ser gay é o que torna Moonlight universal?”, algo que pode ser trocado para “o fato de Sam Lenvisnon não ser negro é o que torna Malcom & Marie tão identificável?”.
Por fim, um filme bem leve do que esses dois citados e maravilhosamente despretensioso é Eu me Importo, título o qual fez Rosamund Pike (Garota Exemplar, 2014) vencer o Prêmio Golden Globe neste fim de semana por sua atuação como a autodeclarada vilã Marla Grayson. Co-estrelado por Peter Dinklage, o inesquecível Tyrion Lannister em Game of Thrones, e ainda a imponente Dianne West, Eu me Importo é uma comédia satírica que faz você assistir uma guerra entre golpistas e inevitavelmente torcer para que alguém, no caso Marla, se dê mal. Filme divertidíssimo!
Enquanto na era pré-streaming tínhamos produtoras que se fragmentavam em diferentes “joint-ventures” que atendiam a gêneros específicos do cinema (como a Paramount Pictures e Nickelodeon Pictures ou ainda Walt Disney Pictures e Miramax), a Netflix vem agora como aquela produtora que quebra a expectativa daqueles que fazem de tudo um pouco, mas nada direito.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 03 de março de 2021.