Há 50 anos, Chico Buarque lançava o disco Construção, indiscutivelmente uma obra-prima da música brasileira. Ao longo do disco, Chico aborda a construção em seus mais diversos sentidos: a construção semiótica, a construção social, uma edificação literal. Arquitetamos tanto sobre o mundo e sobre nós ao passar das décadas e, cá estamos, meio século depois, ouvindo nos falarem em “desconstrução”. Eu ainda nem sabia a existência dessa palavra quando, na adolescência, ela cruzou meu caminho em forma de menina, mais especificamente uma colega de colégio, grávida, aos 16 anos.
Ela não foi a primeira garota da escola a engravidar na adolescência, mas aquela menina de farda que escondia o corpo por baixo de um casaco bordô, foi a primeira que não julguei. Nessa época, questionei o tratamento que ela recebia, as fofocas e adjetivos, nenhum deles atribuídos ao pai do bebê, também um aluno. Debati junto com minhas amigas educação sexual e o direito à escolha. Neste processo constante e ininterrupto de aprendizado e “desprogramação” de preconceitos que reproduzimos, questões tornavam-se mais claras, outras mais turvas. Viva nossa pequena revolución!
Anos e anos depois, zapeando pelo infinito catálogo da Netflix, sou fisgada pelo trailer de Möxie: Quando as Garotas Vão à Luta (2021), novo filme coming-of-age da Netflix com Bikini Kill tocando nas alturas. O contexto: a jovem Vivian (Hadley Robinson) começa mais um período letivo no Ensino Médio e é acostumada a ser só mais uma garota no meio da multidão de alunos. Quando a novata Lucy (Alycia Pascual-Pena) começa a levantar problemáticas sexistas que acontecem na escola, Vivian passa a observar o cotidiano com outros olhos. É após uma conversa com sua mãe Lisa (Amy Poehler), que fez parte do movimento punk feminista underground “Riot Grrrl” nos anos 1990, que Vivian descobre uma caixa repleta de fanzines e manifestos feministas escritos por Lisa e amigas décadas antes. Essa era a chama que faltava para Viv começar um movimento feminista anônimo no colégio: “Moxie”, um adjetivo em inglês usado para expressar coragem, determinação; nesse contexto, uma garota arrochada! O “play” foi instantâneo.
De forma leve, o filme problematiza atitudes sexistas que são bastante normatizadas no ambiente escolar, seja nos Estados Unidos ou aqui. Todo mundo deve se lembrar de algum garoto da escola que tinha “brincadeiras” com as meninas, puxando os cabelos, dando beijos e abraços não solicitados (eufemismos para assédio). Ou ainda uma garota que era considerada vadia enquanto os meninos eram garanhões. Você consegue lembrar quantas vezes esses comportamentos foram repreendidos, seja pelos homens, mulheres ou até administradores do colégio? Moxie acerta em cheio quando apresenta uma nova geração feminista, que é aberta a diversos recortes sociais e que abraça o feminismo interseccional, abordando racismo, sexismo e transfobia. O movimento que se inicia na escola de Rockport, no Oregan, abraça e alcança todos, incluindo alunos e professores.
O longa-metragem dirigido por Amy Poehler é baseado no romance best-seller de Jennifer Mathieu, considerado pela revista Time um dos melhores livros juvenis de 2017. Vale salientar que, de toda forma, Moxie é um filme adolescente, então não há profundidade teórica nele ou nada desse tipo. Pelo contrário, existem até pitadas bobinhas de drama juvenil, um romance incompreendido aqui, uma amizade não correspondida acolá… e até mesmo um momento mais tenso do roteiro, no ato final, nem recebe uma carga dramática proporcional para a gravidade do problema.
Ainda assim, encaro Moxie como um filme que vai iniciar garotas e garotos pelo processo de desconstrução. Para nós, adultas, Moxie é uma amostra da capacidade que as gerações pós-Z têm para, efetivamente, alcançar mudanças culturais necessárias. E se esse despertar tem Bikini Kill como trilha sonora, eu quero assistir de perto!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 24 de março de 2021.