Jair Messias Bolsonaro me matou num sonho. Aconteceu de forma cínica e covarde. Enquanto nós estávamos num caminhão militar, eu fazendo cobertura jornalística ao lado dele e de seus familiares, o governante apontava uma metralhadora para a lona acima de nossas cabeças e atirava para o céu sem motivos. “Presidente, estamos passando por debaixo de pontes de madeira numa comunidade rural, o senhor não acha isso perigoso?”, indaguei. Ele me olhou com cara de quem não gosta de ser questionado. Deu alguma resposta sem nexo e grosseira. Abaixou a arma de grande porte e puxou do coldre uma pistola. Fingiu que brincava. Estava ao meu lado, mas virado de costas para mim. Ainda olhando para frente, propositalmente direcionou a arma em minha direção e disparou um único tiro em minha têmpora direita de forma que parecesse um acidente.
Acordei com o zumbido do tiro ainda em meus tímpanos e uma forte dor de cabeça. Bolsonaro me matou, mas apenas em sonho. Infelizmente, não tem sido o mesmo para centenas de milhares de pessoas que morreram e tantas outras que irão morrer com o mesmo modus operandi: cínico e covarde.
É, nesta semana ando particularmente sorumbática. Difícil não estar e espero, profundamente, que você concorde. Não há como dissociar nossa situação política e sanitária do dia a dia a tudo ao nosso redor. Eu não sei se o entretenimento tem me deixado triste ou se é o contrário. Parafraseando aquele dilema de Rob no romance (ou no filme, o que preferir) Alta Fidelidade: os filmes e séries têm me deixado mais triste ou estou consumindo esse conteúdo por estar triste?
Durante o fim de semana, assisti ao terror O Nevoeiro (2006), baseado num conto homônimo de Stephen King, preparada para uns sustos gostosos e alguns pavores típicos de SK. Ao invés disso, o filme inteiro pareceu como um cenário premonitório, uma analogia ao Brasil de 2018 para cá. A cegueira diante do óbvio, os falsos profetas, a busca irracional para questões lógicas e o desespero eventualmente tomando conta até dos mais sãos pareciam se encaixar perfeitamente na nossa atualidade trancafiada.
Vieram até mim algumas análises literais do nosso contexto, como o excelente podcast Medo e Delírio em Brasília, programa semanal que expõe a agenda (em diversos sentidos) do Presidente e seus comparsas, fazendo cobertura detalhada, incrivelmente bem-humorada, afiada e embasada nos já mais de 800 dias de governo.
Ainda não sei se estou correndo atrás do conteúdo pesado, mas também assisti nos últimos dias à série O Caso Evandro, uma produção original Globoplay baseada no podcast estrondoso Projeto Humanos, do jornalista Ivan Mizanzuk. Enquanto Medo e Delírio fala mais sobre o Brasil de hoje, O Caso Evandro fala sobre o Brasil de ontem e hoje, um País que carrega dívidas nunca pagas e acumuladas à sociedade.
Ontem pensei em assistir uma comédia para relaxar e agora rio pensando que não foi exatamente a melhor escolha para o momento. Poucas vezes usei nesse espaço a palavra a seguir pela importância que ela carrega, mas o especial Bo Burnham: Inside merece o uso dessa carta: genial. O que ele fez ali, sozinho num quarto minúsculo, é genial. Uma comédia musical feita por um homem durante o isolamento social em 2020 e o processo conturbado de alguém que cria música e reflete sobre o papel da comédia, elementos que formam a base de sua carreira, enquanto passa por picos de ansiedade e depressão. Olhei para Burnham, agora vivendo nos EUA com a pandemia da covid-19 sob controle, pensei durante quanto tempo mais ficaremos, nós brasileiros, no cenário agoniante que o fez criar talvez o material mais importante de sua carreira por um custo que não lhe foi pedido.
Não me entenda mal: eu recomendo absolutamente todas as séries, os filmes e os podcasts que indiquei nesse texto e inclusive quero escrever mais detalhadamente sobre alguns deles nas próximas semanas. Mas talvez seja demais consumir tudo numa tacada só. Então te indico o seguinte: Descobri, como Bo Burnham, que para mim a música é essencial para dias melhores. Se estiver se sentindo sobrecarregada, abra o YouTube. Comece ouvindo Jacob Collier e Daniel Caesar cantando ‘Best Part’ ao vivo em Toronto. Se for sua praia, você pode seguir pelo canal do Scary Pockets e dar play no vídeo mais recente, um cover funkeado de ‘Everybody Wants to Rule The World’, de Tears for Fears. Ou cuide um pouco do jardim, e, se não tiver, comece um. Semente por semente. Medite, prepare um bolo, faça uns polichinelos, pule corda, ouça música que te faz bem. Distraia-se, só não esqueça quem, diariamente, nos dá as costas e aperta o gatilho.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 23 de junho de 2021.