Ainda planejando a viagem ao Japão, questionei-me como eu reagiria num país que acredita tanto no sagrado manifestado, principalmente, através da natureza. Acontece que minha relação com religiosidade é prosaica e tenho pequenas ideias que formam a minha relação com entidades superiores. Sou firme quando concordo com cientistas que afirmam que tudo é energia, ao passo em que sinto fisicamente uma energia diferente em funcionamento, algo que me conecta com a terra e o ‘aqui e agora’, após uma aula bastante espiritual de yoga. Nessa viagem de férias, me descobri como uma “religiocuriosa” e vou compartilhar com vocês algumas das experiências marcantes pelas quais passei lá do outro lado do mundo.
Vou começar com algo que só compreendi melhor depois de duas semanas de viagem. Existem muitos, mas muitos templos e santuários espalhados nas ruas do país. Enquanto os templos são voltados para a prática e crenças budistas, os santuários são xintoístas. O budismo é de origem indiana mas chegou no Japão por volta do século VI através de missionários chineses que buscavam levar a religião a outros países do leste asiático. Ao contrário do que muitos pensam, ela não é teísta, ou seja, não possui um Deus em sua corrente principal. Já o xintoísmo vem de antes disso e é considerado mais uma vivência espiritual do que religiosa, com uma base de crenças em diversos deuses; cultua, principalmente, a natureza e os antepassados (e isso explica muito da cultura japonesa e o cuidado e reverência com tudo que se pode). Sem ambição de se expandir através da conversão, é uma crença mantida apenas, praticamente, pelos japoneses. Sim, as duas são bem parecidas em sua essência.
Santuários estão por todos os cantos. Logo no começo da viagem, fiquei encantada quando vi um pequeno altar logo na rua do nosso albergue. Era um templo pequeno mas extremamente bem cuidado, cercado por mensagens de desejos, lanternas, estátuas e uma fonte de purificação. Passamos meio acanhados, sem saber como agir ou se era até permitido entrar lá. Num local um pouco mais movimentado, no santuário de Toshogu (parque de Ueno, em Tóquio), pudemos observar melhor os costumes e começamos a experimentar mais da vivência espiritual. Segura a colher de bambu com a mão direita, lava a esquerda. Troca de mão, lava a direita. Pega mais água com a colher. Coloque sua mão em formato de concha e transfira a água para ela. Coloque essa água na boca. Não engula, cuspa no chão. Talvez pelo calor extremo ou ainda o cansaço das longas caminhadas, o ritual 'misogi' com a purificação através da água trazia uma paz instantânea e acabou virando parada obrigatória pelo bem dos nossos 30 segundos (a mais) de paz.
Diferente de outras religiões pelas quais vivenciei a curto ou longo prazo, os templos e santuários do Japão me traziam um sentimento de paz que sobrepunha o temor. Mesmo sem ter a quem rezar nos momentos que pediam oração, eventualmente virou rotina para mim tirar os sapatos, acender incensos e me curvar diante de monumentos.
Mas também vivenciamos um pouco do budismo. Durante a estadia em Quioto, fizemos um passeio com Kuniatsu, um monge que nos levou para conhecer lados inexplorados do templo de Fushimi Inari, o lar dos mil portões e rota de bem mais do que mil turistas. Subimos escadas por mais de uma hora debaixo de um sol de 42ºC e eventualmente escapamos da multidão. Nesse momento, Kuniatsu nos apresentou a um conceito encantador da cultura japonesa: o shinrin-yoku, ou “banho de floresta”. É a sensação de calmaria provocada por uma caminhada por um parque ou um bosque, e, muito além disso, é a cura através da natureza. A terapia florestal, como chamam, é algo já provado como efetivo por cientistas, que acreditam, por exemplo, que a prática diminui o estresse e a pressão sanguínea. O banho de floresta é considerado uma medicina preventiva e entrou, inclusive, no programa de saúde pública do governo japonês. Nossa mente estava ativa para absorver tudo de bom que nos cercava e isso foi primordial para nos livrarmos do cansaço e começar, então, o processo de meditação guiada. Foram 40 minutos de entonação de mantras, concentração e respiração profunda.
Toda viagem tem seus percalços, claro. Não foram vinte dias de paz interior e nem muito menos do mantra ‘om kiri kaku sowa ka’. Ainda assim, ao final do dia, tudo estava bem. Talvez ver uma sociedade respeitosa com sua história e sua tradição nos fez ser mais cuidadosos e agradecidos com as pequenas ou grandes coisas do dia a dia. Banhados de florestas e respeito cíclico, voltamos para casa com a certeza de que nos tornamos pessoas melhores.
*texto publicado originalmente na edição impressa de 23 de outubro de 2019