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#78 A trilogia do “Antes”

publicado: 10/02/2021 07h00, última modificação: 09/02/2021 12h14
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tags: richard linklater , antes do amanhecer , antes do por do sol


“E se?”. Uma pequena frase composta por três letras. Uma simples interjeição que abriga, no espaço entre suas pequenas palavras, um mundo de incertezas, projeções e ideações. E se eu começasse este texto de uma forma diferente, vocês entenderiam meu propósito?

Não fazia muito tempo que eu era nascida quando estreou o primeiro filme da trilogia Antes do Amanhecer, de Richard Linklater. A cada nove anos, um filme lançado: 1995, 2004 e 2013. Apesar de terem me indicado esse filme ao longo dos anos, fico contente em tê-los assistido agora que beiro os 30 anos de idade. E vou querer assistir tudo de novo aos 40, 50, 60 e por aí vai. Isso porque a “trilogia do Antes” não é sobre uma única história de amor entre o estadunidense Jesse (Ethan Hawk) e a francesa Céline (Julie Delpy); as cidades de Viena, Paris e a região da Messênia enquanto personagens. Eles são mensageiros de uma história maior.

Baseada num romance vivido pelo diretor, Antes do Amanhecer (1993) tem tudo para ser um típico romance hollywoodiano. Ele traz jovens espontâneos que embarcam juntos numa aventura pelo desconhecido. Duas pessoas sem nada a perder, no auge de suas independências afetivas. Lugar onde todos nós já estivemos ou onde queríamos estar. O espírito blindado da juventude, o olhar divertido e deslumbrante do início da vida, nosso próprio amanhecer, “at its finest. O enredo simples que nasce num trem e um simples convite: “eu sei que parece loucura, mas desce desse trem comigo?”. Aquilo que nasce de uma paquera, evolui para uma inesquecível noite regada não de bebidas, amassos e sexo, mas sim de devaneios e conversas despretensiosamente profundas. Aquilo que eu chamo de “paquera alto padrão”. 

Este primeiro filme é um gosto do que viria com Waking Life, dirigido e roteirizado também por Linklater e um dos meus títulos preferidos de todos os tempos. Ao invés de nos entregar de primeira as características e perspectiva dos protagonistas, montamos o quebra-cabeças a partir das pequenas nuances e histórias presentes em cada diálogo. Os personagens, por sua vez, são meros interlocutores de discussões sobre tudo que cabe entre a vida e a morte.

Já em Antes do Pôr-do-sol, temos o reencontro quase uma década depois, no melhor estilo Richard Linklater de acompanhar a passagem real do tempo (vide Boyhood, 2014). A inquestionável química entre Ethan e Julie envelheceu como um bom vinho. Desta vez, caminhando pelas ruas de Paris, eles falam sobre suas vidas e insatisfações enquanto viveram seus próprios “entardeceres” longe um do outro. Suas personalidades espontâneas deram espaço para vivências muito mais seguras; Jesse, que era mais cético, buscou frequentemente preencher os vazios deixados por Celine com pequenas coisas que eram características dela. O mesmo acontece com Celine, que, enquanto o sol cai, desarma-se e demonstra para Jesse suas fraquezas e fragilidades. Enquanto fomos facilmente convencidos no primeiro filme que eles precisavam de uma continuação na história, o filme subsequente vem apenas para bater o martelo: “vocês precisam se dar essa chance!”. 

Antes da Meia-Noite encerra a trilogia com doses mais realistas e racionais sobre envelhecimento e comodismo na vida a dois (ou mais, se contarmos os filhos). Entre o primeiro e o segundo filme, temos um limbo onde os protagonistas estavam separados. Já entre o segundo e o terceiro, temos um limbo da vida juntos. As brigas são mais constantes, as feridas mais abertas. Se antes tínhamos discussões sobre o futuro sob uma perspectiva romântica, agora temos o anti-romance. Na verdade, que expõe a falácia e as fragilidades do amor romântico. Vemos o resgate e decadência de uma paixão em apenas um dia. Até o cair da noite, torcemos para que os dois continuem juntos. Não porque acreditamos em alma gêmea ou conto de fadas, mas temos frescos em nossas memórias todos os motivos pelos quais eles se apaixonaram. Para eles, são lembranças esquecidas. 

Engraçado como falo na história como se fosse real. Para mim, o sentimento foi esse. O roteiro, escrito por Linklater e Kim Krizan no primeiro filme e ainda Hawk e Delpy nos outros dois, é genuinamente puro, factível, real. No último filme da trilogia existe uma frase que fala muito sobre Jesse, Celine, eu e você: “no final das contas, não é o amor pelo outro que importa, é o nosso amor pela vida”. Quando o amor pelo outro torna a cotidiana jornada do sol mais espetacular, estamos no caminho certo. 

*coluna publicada originalmente na edição impressa de 10 de fevereiro de 2021.