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#101 Anne Shirley - uma fascinante personagem da literatura canadense

publicado: 28/07/2021 08h00, última modificação: 14/10/2021 11h38
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por Gi Ismael*

Lucy Maud Montgomery ainda era adolescente quando anotou em algumas folhas de papel a história de dois irmãos idosos que resolveram adotar um garotinho para ajudar na lavoura. Por um erro do orfanato, acabaram recebendo uma garotinha em casa. Algum tempo depois, em 1908, a autora canadense finalmente desenvolveu o enredo que contara para si mesma, e escreveu uma das mais cultuadas obras infanto-juvenis do mundo: ‘Anne de Green Gables’. Essa história deve soar familiar para muita gente que acompanha Netflix aqui no século 21. Sim, estamos falando da obra que originou a encantadora série ‘Anne com E’.

Considerada uma das mais bem avaliadas (e injustiçadas!) séries da plataforma, a adaptação de ‘Anne’ para as telinhas foi criada pela roteirista e produtora Moira Walley-Beckett, uma das mentes criativas por trás da insuperável ‘Breaking Bad’. A série capta o espírito aventureiro, carinhoso e literário do livro enquanto moderniza sua linguagem e roteiros sem forçar a barra. 


Anne Shirley é uma órfã de 13 anos (11, no primeiro livro) que usa de sua imaginação para afastar as más lembranças vividas nos lares temporários por onde passou e no próprio orfanato. Apaixonada por inventar histórias, ler e escrever, ela enxerga poesia em tudo ao seu redor. Anne é dramática e aventureira, assertiva e questionadora. Branca feito a neve, dentucinha e com cabelos naturalmente vermelhos, ela não gosta de sua aparência -- sempre motivo de risada por crianças de sua sala. Com a nova estrutura familiar, ela e os irmãos Matthew e Marilla serão apoio mútuo e amor incondicional.

‘Anne com E’ tem um talentoso corpo de atores, dos protagonistas aos secundários. R.H. Thomson atua como o introspectivo e amoroso Matthew Cuthbert, guardião legal de Anne ao lado de sua irmã Marilla Cuthbert, vivida por Geraldine James. E ela. Amybeth McNulty. A garota que nasceu para esse papel mas que se mostra, a cada temporada, a cada episódio da série, uma talentosa atriz com uma longa estrada pela frente. 

Apesar de ter gostado de imediato do ciclo de personagens e, claro, da maravilhosa Amybeth McNulty no papel de Anne, a primeira temporada soava muito superficial em suas problemáticas. Um pouco de “problemas de gente branca”, sabe? Mas só um pouco. Penso que seria arriscado demais fugir do contexto original da obra já nos primeiro episódios e até desnecessário logo de início. De forma sutil, na segunda e na terceira temporada, somos apresentados a personagens diversos: gays, negros e nativos-americanos fazem parte da história, assim como sempre fizeram para além das ficções. Com lindas histórias e personalidades cativantes, o roteiro não nos faz esquecer do sangrento passado do continente americano. 

Há rumores de que foi justamente a politizada na série que fez com que a produção fosse cancelada após três temporadas. Talvez não faça muito sentido do ponto de vista mercadológico da Netflix, que adora uma conteúdo "desconstruído" para chamar de seu. Mas talvez faça sentido para as gerações de fãs da série de livros. 

Aparentemente, a justificativa é financeira mesmo. A Netflix, plataforma não muito transparente em relação aos números de assinaturas ou audiências de suas produções, achou que o público-alvo, adultos entre 25 e 54 anos, não havia sido alcançado da forma como queriam. Agora fala isso para os milhares de fãs que fazem petições desde 2019 clamando pelo retorno da série. Ou ainda para os donos de livrarias online e físicas, que viram os livros Anne de Green Gables entrando para a lista de mais vendidos no mundo.

Mas será que os executivos da Netflix ainda não aprenderam que número e alcance pouco tem a ver com qualidade? 

Enquanto o serviço de streaming aumenta sua mensalidade e cancela suas poucas produções excelentes que possuem legiões de fãs ao redor do mundo, alternativas mais em conta vão chegando com um quantidade bem maior de séries e filmes de qualidade. Bem, eu torço agora para que ‘Anne com E’ não fique no limbo e que, em breve, encontre uma nova emissora (ou devo dizer “lar”?) para nos contar mais de sua história. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 28 de julho de 2021.