Em apenas um ano, quatro adaptações live-action de clássicos da Disney passam pelos cinemas: já tivemos agora em 2019 Dumbo e Aladdin, mas ainda vem por aí O Rei Leão e Malévola 2 (baseado n`A Bela Adormecida). Há alguns dias foi anunciado que mais de trinta anos depois, A Pequena Sereia também voltará às telonas com personagens em carne e osso.
Ainda falta muito para o filme acontecer: a expectativa é de que as filmagens comecem em 2020 e as especulações para o elenco completo já começam. O que se sabe por enquanto é que o longa será dirigido por Rob Marshall, diretor de O Retorno de Mary Poppings (2018); com roteiro de Jane Goldman, que assinou ainda KickAss (2013) e Kingsman (2014); e trilha sonora de Alan Menken, compositor da trilha original do filme de 1989, e Lin-Manuel Miranda, criador do estrondoso musical Hamilton. A Disney não brinca em serviço.
Ao invés de ser uma notícia que agradasse todo mundo, um detalhe fez com que começasse mais uma daquelas intermináveis discussões no berço das pessoas que tudo odeiam, a Internet: quem viverá Ariel é a atriz Halle Bailey. A adolescente de 19 anos foi descrita por Rob Marshall em entrevista ao HollywoodLife como uma “rara combinação de espírito, coração, juventude, inocência e substância - além de uma gloriosa voz - todas as qualidades intrínsecas necessárias para desempenhar esse papel icônico”. Ah, o detalhe: ela é preta.
O mundo caiu. Baixou o santo de comentaristas de quinta série e as pessoas xingaram muito no Twitter. Era um absurdo que, em pleno 2019, alguém aparecesse com uma notícia dessas. Primeiro, a questão foi a cor da pele. Depois, a cor do cabelo. Eu não vou nem entrar no mérito de discutir que estamos tratando aqui de um ser mítico e inexistente (desculpa, Discovery Channel) e nem no fato de que é possível ser negro e naturalmente ruivo. Mas vou tentar mostrar o porquê do anúncio da Disney ser relevante enquanto preocupar-se negativamente com isso é irrelevante.
Neste ano, foi publicado o Relatório de Diversidade de Hollywood realizado pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). O estudo revelou dados assustadores, mas não surpreendentes, sobre representatividade nos blockbusters estadunidenses de 2017. Foram analisados 200 filmes e mais de 1.200 programas televisivos. Foi apontado que 80,2% dos protagonistas destas produções eram de raça branca, enquanto as demais etnias (preta, asiática, nativo americana, latina) se dividiram com 19,8% dos papéis principais. É importantíssimo salientar que nos EUA as pessoas não-brancas representam quase 40% da população, então os números precisam dobrar para que a divisão seja minimamente justa -- e personagens como a nova Ariel vão ajudar nessa caminhada. As evidências do estudo mostram que a diversidade do público americano tem aumentado (com a previsão crescer para 53% até 2050) e, com isso, a preferência por conteúdos diferentes também é maior -- e isso inclui se ver representado nas telonas e telinhas.
Certo, então vimos o que é relevante. Mas qual a parte que não importa nessa história? É que não importa que a cor da princesa Ariel na construção do filme simplesmente porque isto é completamente irrelevante para a trama. Não há absolutamente nada a perder pelo fato de uma garota preta a interpretar. Lembro-me de ter lido O Guia do Mochileiro nas Galáxias e ser apresentada ao alienígena Ford Prefect como um rapaz alto e ruivo. Criei a imagem fixa do personagem que me acompanhou ao longo dos cinco livros e era parecida com David Dixon, ator que o interpretou na adaptação para TV. Mas quem foi escalado para interpretar Prefect no filme de 2005 foi Mos Def -- ator e rapper negro estadunidense. Resultado: ele era o Ford perfeito. Era fluente em sarcasmo, era meio estranho e piscava pouco os olhos -- ou seja, estavam ali nuances que o definiam. Aquela era apenas mais uma versão de um personagem icônico. Sabe o ditado “não fede nem cheira”? Isso tudo que eu citei é algo que poderia ser interpretado assim, mas tudo acaba cheirando a flores para quem é se enxerga na ficção.
São casos diferentes de Pocahontas (1995), Mulan (1998), A Princesa e o Sapo (2009) ou Moana (2016). Em todas essas tramas, a ancestralidade e o contexto geográfico das protagonista são fatores decisivos no roteiro em diferentes níveis. Em A Pequena Sereia não, simples. (Aposto, inclusive, que o discurso do filme original mude nesta adaptação live action, mudando o foco do amor irreal e onde as opções na vida dela mudam entre ficar sob as asas (ou calda) de um pai controlador e temperamental ou literalmente abrir mão da habilidade de falar e cantar para ficar junto com um homem com o qual ela nunca deu um “oi”).
E se mesmo assim ainda existir gente insatisfeita (a quem estou tentando enganar?, vai ter gente insatisfeita e racista até a eternidade), é só lembrar que o desenho original cheio de criaturas míticas brancas ainda existe. É só ir lá e assistir. A vida dessas pessoas vai continuar da mesma pequena forma de enxergar o mundo, enquanto milhões de crianças pretas vão se ver como protagonistas de uma historinha de ‘era uma vez’ subaquática.
*publicada originalmente na edição impressa de 10 de julho de 2019