por Gi Ismael*
Não existe alguém como Björk. Se toda sua discografia emblemática, aliada aos clipes lisérgicos e acordes dissonantes não foram suficientes para compreender sua versatilidade e polivalência, o podcast Björk: Sonic Symbolism veio para registrar todo o lado humano, afetivo e criativo da artista. Vai ser difícil desvincular esse texto do olhar de uma fã – e é por isso que eu nem vou tentar.
Prestes a lançar seu décimo álbum de estúdio, a islandesa estrela o programa que destrincha seus discos, um por um, em conversas intimistas com os amigos Oddný Eir, uma filósofa e escritora, e Ásmundur Jónsson, musicologista. Três partes já foram ao ar em episódios de 50 minutos que debatem sobre os álbuns Debut (1993), Post (1995) e Homogenic (1997).
Ouvindo Björk falar tão minuciosamente sobre sua discografia me fez conseguir, finalmente, traduzir o que sempre me atraiu em sua arte. Não é apenas a voz única, o experimentalismo ou a simbiose com a tecnologia e natureza em suas composições. É a posição que ela firmou para se colocar como uma artista que quebra expectativas impostas pelo mercado fonográfico, pelo patriarcado. E ela é assim até hoje.
Cada capítulo começa com palavras que definem aquele disco a ser comentado. Tímido, virgem, mensageiro e bege foram alguns dos termos escolhidos para Debut. Isso porque, segundo discorre a própria artista, esse foi o álbum que marcou o início de sua jornada para entender como pertencia no mundo enquanto artista, logo após a saída da banda The Sugarcubes. Com formação acadêmica em música, foi neste álbum que pôde exercer o experimentalismo faixa por faixa, ainda que de forma acanhada. Se aventurou pelo jazz em suas vertentes africanas, cantou sobre a infância e adolescência em seu recluso país de origem e sobre a ampla liberdade criativa recém-conquistada.
Quando embarcou na vida de artista solo, Björk já tinha 27 anos. Isso fez com que encarasse de forma muito madura o mundo no qual estava entrando, se permitindo horas ao deslumbre, horas à reclusão. Durante a entrevista, citando Kate Bush como uma visionária, Björk disse que nos anos 1990 as mulheres da indústria fonográfica eram separadas em duas categorias: compositoras com atitude séria, ou intérpretes sensuais. Nesse momento, percebeu que não queria se limitar a isso e traçaria, ela mesma, seu caminho.
Enquanto Debut traz em sua capa inocência e tranquilidade, o disco Post estampa energia, vibração. Com senso de humor evidente, gravou uma versão para a música ‘It’s Oh So Quiet’, clássico de Hans Lang lançado nos anos 1950, e colocou uma pulga atrás da orelha dos críticos que simplesmente não entendiam para qual lado ela estava indo quando flertou com a música eletrônica em ‘Army of Me’ e ‘Possibly Maybe’. A introspectiva garota islandesa começava, aqui, a dar espaço para a extrovertida e esquisita artista, entrevistada aos montes na época. Urbano, mesquinho, promíscuo e eufórico são as palavras usadas para definir seu segundo disco.
Em 1997, de repente, tudo ficou quieto. É que seu próximo disco, o fazer do Homogenic, foi um momento de reclusão para Björk. Morando na Espanha, ela decide explorar cantigas e acordes nórdicos, viajando ainda por sons da América Latina, África e Ásia em seu disco – e isso tudo aparece nas entrelinhas da capa do álbum. Homogenic é definido como patriota, guerreiro e contrastante. Foi a maior contradição para sua própria obra até então.
O podcast vem para celebrar os caminhos tortos trilhados até atingir o Fossora, que chega às plataformas de streaming e lojas físicas em 30 de setembro. Na última terça-feira (6), Björk lançou o single ‘Atopos’, no qual canta a plenos pulmões sobre a falta de conexões interpessoais enquanto se veste como um microorganismo no bosque. Pois é. Aos 56 anos de idade, ela continua no descompasso da indústria musical, encarando a arte como personalidade, interpretação e expressão – e é um privilégio viver na mesma era de uma artista assim.