O cineasta Carlos Saldanha, brasileiro que carrega no currículo de diretor animações da 20th Century Fox como A Era do Gelo, Rio e O Touro Ferdinando, aceitou um novo desafio live-action e partiu numa missão para dar vida a figuras de crendices brasileiras. Saci-pererê, curupira, iara, boto cor-de-rosa, tutu marambá e a cuca aparecem como personagens de Cidade Invisível, mais nova série brasileira de ficção. Ontem nessa mesma página, o amigo André Cananéa escreveu sobre esta produção original Netflix. Como sempre, recomendo a leitura e te convido agora para me acompanhar por uma outra ótica sobre o mesmo conteúdo.
Era noite de São João quando um incêndio acomete a mata que circula a pequena comunidade ribeirinha do Toré, no Rio de Janeiro. Gabriela (Julia Konrad), uma ativista e protetora da comunidade, entra na floresta para salvar a pequena filha Luna (Manuela Dieguez) e acaba morrendo de forma misteriosa. A trama se desenrola quando o policial ambiental Eric (Marco Pigossi), marido de Gabriela e pai de Luna, vai investigar a morte de sua esposa. Situações inexplicáveis começam a se desenrolar e logo ele percebe que está vivendo ao lado de entidades da cultura brasileira.
O autor britânico Neil Gaiman, em muitos de seus contos e romances, coloca personagens advindos de crenças diversas como habitantes do planeta Terra ao lado de nós, pobres mortais. Outras dez obras, de autores e autoras diferentes, que usam o mesmo mote devem ter aparecido na sua cabeça agora. Gaiman não é nem de longe o precursor desse viés ficcional, mas é difícil não comparar Cidade Invisível com a adaptação de Deuses Americanos para o Amazon Prime Video, tanto no que tange a direção, quanto no tocante à fotografia e à direção de arte. Na disputa entre as duas, Cidade Invisível, diferente de Deuses Americanos, me deixou na expectativa por uma segunda temporada.
A série brasileira traz efeitos gráficos belíssimos, com transições marcantes como as asas da mariposa que se transformam nos olhos da Cuca (Alessandra Negrini), o furacão do Saci-Pererê (Wesley Guimarães) ou a magnífica figura de Iberê, o Curupira (Fábio Lago). A produção, porém, peca em alguns aspectos técnicos e argumentativos. Na parte técnica, existem cortes bruscos entre inúmeras cenas que impossibilitam a criação de uma atmosfera que está começando a ser proposta no momento. Duas ou três vezes o corte é tão grave que acontece antes mesmo de uma frase terminar. A direção também não favoreceu a atuação de boa parte do elenco, até mesmo de Alessandra Negrini, um dos nomes mais destacados do casting. Os personagens secundários, na verdade, roubam a cena: Victor Sparapane (Boto), Jéssica Córes (Iara) e Fábio Lago, em minha opinião, são dos mais convincentes da série.
A produção é ambientada no Rio de Janeiro e aí mora uma das questões que me incomodou na série. Por trazer figuras de crenças em sua maioria indígenas, a história ficaria ainda mais rica se fosse ambientada no Norte do país. Isso traria um elemento diferente, saindo do lugar comum do Rio de Janeiro “Brasil para gringo ver”, usufruindo, ao mesmo tempo, de cenários esquecidos em nossas produções audiovisuais e apoiando a economia local. Belém do Pará, por exemplo, é uma cidade composta da faceta urbana e da rural tal qual aparece na série, mas que poderia ser palco, ainda, de críticas ao desmatamento protagonizado por grileiros e as disputas por terras indígenas.
Saldanha fez gol quando trouxe personagens de diferentes etnias para representar as entidades brasileiras, porém errou ao escalar um ator não-indígena para interpretar o Curupira. Já disse previamente aqui no texto: Fábio Largo foi maravilhoso no papel. Porém a crítica não é direcionada a ele. Simplesmente não faz sentido na narrativa, assim como não fez quando Tom Cruise protagonizou O Último Samurai ou Jake Gyllenhaal fez o papel principal em Príncipe da Pérsia. Quando a raça é elemento descartável na história, não há motivo para problemática. O jogo muda quando a única personagem indígena da trama é a esposa do Curupira e ela não tem uma fala sequer no minúsculo tempo de tela.
Minha vida toda, encarei saci-pererê e outros personagens como folclore brasileiro. Mas foi lendo o que parte da comunidade indígena teve a dizer sobre a série que aprendi e entendi que “folclore” é um termo bastante colonizador, afinal, essas entidades são crenças para uma boa parte da população (como é para o personagem de José Drummond na série).
Cidade Invisível merece uma segunda temporada, sem dúvidas, e estou ansiosa por ela. Torço para que a produção, que já de imediato alcançou o público internacional, venha com novos episódios com um tiquinho mais de identidade brasileira -- só assim é possível nossa identificação.