Os anos 1980 voltaram. Por muito tempo, esta foi a década renegada. Sua música, suas roupas, a indústria do entretenimento estadunidense em massa. Mas, ah, isso são águas passadas - já faz 40 anos que o ano de 1980 passou por nós. E, então, eles voltaram. Os filtros VHS usados em smartphones, as camisetas e calças folgadas na moda, as sombras neon na maquiagem e muitas, muitas referências da cultura pop oitentista nas telonas e telinhas. De toda essa enxurrada, a série Pose deu um passo à frente na ousadia e conseguiu explorar um ponto pouco visto até então na ficção: a cena drag e LGBT dos subúrbios nova iorquinos.
Cores, por aqui, não faltam. Não haveria outro jeito melhor de ilustrar os bailes que surgiam nos guetos de uma das maiores metrópoles do mundo. Competições de maquiagem, de figurino, de dança e o protagonismo negro fazem parte da série como tinha que ser, mas não definem a trama por completo. Não se deixe levar pela troca de farpas e estalos de dedos, alívios cômicos usados na medida certa: Pose é também o retrato da marginalização de uma população sem auxílios e sem voz, de uma comunidade por vezes sem-teto, prostituída e expulsa de espaços públicos. Era necessário tratar da incógnita que foi a proliferação do vírus HIV e, por consequência, todo o preconceito e ignorância voltados para a comunidade gay; o abandono parental; a marginalização da comunidade e recomeços.
Mais significativo ainda é quem é porta-voz da trama: aqui se encontra o maior elenco trans da história da televisão, com mais de 50 pessoas na frente e por trás das câmeras que assumem essa identidade de gênero. Foi graças a primeira temporada, lançada em 2017, que uma mulher trans foi indicada pela primeira vez a categorias no Emmy (Janet Mock, diretora, roteirista e produtora da série), e o primeiro homem negro abertamente gay foi indicado como melhor ator de drama (Billy Porter).
A série se tornou histórica por estes motivos já em sua primeira temporada, mas isso não significa que seja impecável. Apesar do elenco talentoso, a protagonista MJ Rodriguez demora um pouco para convencer do papel de matriarca. Eventualmente acontece, mas até lá, Blanca Evangelista (a personagem) é ofuscada por figuras coadjuvantes como Pray Tell (Billy Porter) e a apaixonante Angel (Indya Moon). Algumas escolhas de roteiro tornam o enredo meio teen que parece deslocado, mas cumpre a função de normalização e humanização das personagens. A direção não é inovadora, mas a direção de arte é maravilhosa. Pesando prós e contras, Pose definitivamente merece seu tempo.
Pessoas bastante jovens para os padrões da indústria assinam o programa. São elas os produtores audiovisuais Ryan Murphy (American Horror Story, Glee, American Crime Story), Brad Falchuck (Glee, Nip/Tuck, The Politician) e o novato Steven Canals. Possivelmente, Pose não existiria não fosse a popularização da cultura drag que veio com o reality show de competição RuPaul’s Drag Race. E o reality, por consequência, talvez não existiria se não fosse o documentário Paris is Burning, lançado em 1991, que abriu um pouco mais as portas para a abordagem da temática na televisão e no cinema. Inclusive, a diretora do longa, Jennie Livingston, é creditada como produtora de Pose por conta da consultoria cedida a produção.
Pose é uma bela dose de empatia e amor ao próximo, além de muito, muito glamour. A primeira temporada entrou há poucos meses na Netflix, mas você ainda não vai encontrar a segunda temporada por lá. Ela só foi veiculada em seu canal de origem, o FX, no ano passado e está disponível no FOX App e deve chegar ao Netflix ainda neste primeiro semestre. Ouvi dizer que os novos episódios se passam no início dos anos 1990, quando o hit ‘Vogue’, de Madonna, estourava nas paradas e evidenciava mais do que nunca a cena drag. Não sei você, mas já estou sedenta para praticar meus passos na frente do espelho.
*publicada originalmente na edição impressa de 08 de janeiro de 2020.