Olá! Meu nome é Gi Ismael e eu gostaria de compartilhar com você o mais incrível musical. Vencedor de nove prêmios Tony (o Oscar da categoria), incluindo o grand prix, ele está em cartaz desde 2011 no Eugene O'Neill Theatre em Nova York e já tomou o lugar de Grease como o 15º espetáculo há mais tempo na Broadway. Hoje já é oficialmente reproduzido na Europa e Oceania e tem uma equipe dedicada a fazer turnês mundiais. A peça é escrita por Robert Lopez, uma das únicas 15 pessoas no mundo a acumular troféus nas premiações do Oscar, Grammy, Emmy e Tony por canções que compôs para filmes, séries e musicais (Frozen, Frozen 2 e Viva: a vida é uma festa são só alguns dos trabalhos dele). Sobre o que fala o tão conceituado musical? Sobre religião e, devo dizer, de uma forma nada sacra. The Book of Mormon é uma comédia satírica escrita e dirigida por Trey Parker e Matt Stone, os criadores de South Park, onde os personagens principais são um grupo de jovens mórmons em missão no país africano Uganda.
Os primeiros minutos do musical se resumem a números que dão umas alfinetadas aqui e acolá sobre a religião Mórmon, alguns princípios absurdos, a ingenuidade dos jovens missionários americanos e a ansiedade pelas viagens mundo afora (contanto que estes sejam países ricos). Eles são mórmons mas poderiam ser de qualquer crença, na verdade: a produção nos mostra que tudo é absurdo quando se visto com um microscópio (South Park é um exemplo de que é possível fazer comédia com quase tudo se feita de forma inteligente e crítica; não à toa, a série já está em sua 23ª temporada). Não demora muito até que a trama vai para um lado bastante pesado e, como muitos gostam de falar, “politicamente incorreto”, com músicas de cair o queixo que diretamente xingam Deus de uma forma que eu nem posso colocar aqui e citam coisas como fome, AIDS, câncer, mutilação genital e diarreia. Sim, é uma comédia. Mas é necessário ver além disso, e até o final, para entender o propósito do espetáculo.
Isso porque The Book of Mormon alcançou -- e continua indo em frente -- o que alcançou porque foi inteligente suficiente para chocar e dar um tapa na cara do seu próprio público, todos aqueles que riram da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (SUD), quando a mensagem ao final de tudo é mais ou menos essa: “eles, mesmo com essa religião aparentemente boba e sem sentido, possivelmente fizeram mais pela humanidade do que você”. Esse mote também aparece no episódio 12 da sétima temporada de South Park, que serviu de embrião para a produção da Broadway (recomendo fortemente que você assista!).
Enquanto admiram as posturas conservadoras estadunidenses com a máxima de Trump de “make America great again”, muitos decidem ignorar as partes que lhes convém: as clínicas legais de aborto, quase todos os estados que permitem o uso medicinal e recreativo da maconha e a liberdade de expressão da classe artística. Os Estados Unidos, com todos os defeitos e esquizofrenias, não são mais aquele país que em 1979 baniu em mais de 40 cidades o satírico A Vida de Brian, do grupo de comédia inglês Monty Python. Nos nossos atuais tempos sombrios de demonização da arte, como seria a recepção se acontecesse no Brasil a estréia do espetáculo O Livro Mórmon? Além de duvidar que ficasse em cartaz por mais do que uma semana, é difícil acreditar que teria vencido tantos prêmios nacionais, esgotado constantemente as sessões e ainda sair em turnê mundial.
Um dos grandes feitos da peça foi ter ido além dos palcos de uma forma que há 40 anos não acontecia, quando o álbum da trilha sonora original deu as caras no Top 10 da Billboard. Mas a cereja no bolo de toda essa história foi a reação da própria SUD. De uma forma geral, a resposta da Igreja foi comedida e ela aproveitou os ácidos limões para fazer uma doce limonada. Ela tem frequentemente anunciado nos playbills e nos locais onde o musical está em cartaz frases do tipo “o livro é sempre melhor” e “você viu o musical, agora, leia o livro”. Pessoas de diversas religiões foram assistir o espetáculo (em nossa sessão havia um grupo de judeus de quipá e tudo) e reação geral, a tendência, é perceber que aquilo é uma caricatura hilária e conseguir enxergar além dela. Você, eu e qualquer pessoa tem a liberdade de não gostar de algo, de se sentir ofendido. Mas aproveito a deixa para encerrar o texto com uma provocação: quando você leu essa coluna até o segundo parágrafo, assumiu de cara uma cegueira crítica ou procurou ler até o final livre de julgamentos, se informando mais sobre o assunto, observando bem as entrelinhas?
*publicado originalmente na edição impressa de 15 de janeiro de 2020.