por Gi Ismael*
Há uma semana, falei aqui sobre amizades, perda e luto, e comentei como a escrita me ajudava a manter a engrenagem funcionando, longe da inércia. Publiquei o texto e lembrei de uma série que já há um tempo gostaria de assistir mas nunca havia encontrado o momento certo para isso. O momento chegou e dei o play em ‘After Life - Vocês vão ter que me engolir’ (podem ignorar esse subtítulo, inclusive), uma produção original Netflix escrita e dirigida pelo ator, comediante e roteirista britânico Ricky Gervais (sem grandes spoilers a seguir).
Na trama, Tony Johnson (Ricky Gervais) é um viúvo na casa de seus 40 anos que perdeu recentemente Lisa (Kerry Godliman) a esposa com quem era casado há 25 anos. Após a morte de sua companheira, ele entra em um estado de depressão e tendências suicidas e a forma com que consegue lidar com o mundo é sendo desagradável e amargo com quase todos ao seu redor (ou, como diria David Gilmour, “hanging on in quiet desperation is the English way”; em tradução livre, “segurar a barra sentindo um desespero silencioso é o jeito inglês”). Tudo em seu cotidiano parece contribuir para que ele seja insuportável: ele é um jornalista frustrado que trabalha num tabloide desinteressante sobre acontecimentos da vizinhança; seu carteiro é enxerido; seu cunhado não o deixa em paz.
Muito denso? Imagina conseguir fazer com que o espectador alterne entre risada em choro em uma troca de cenas, mesclando humor negro e sentimentalismo. Essa é a capacidade e genialidade de Ricky Gervais demonstrada ao longo dos seis episódios (de 20 a 30 minutos cada) da primeira temporada. Vi todos os episódios e, ao fim, me senti mais leve. Ah, e esta não é a primeira parceria do artista com a produtora e serviço de streaming. O sucesso de público e crítica ‘Derek’ foi uma série dirigida e escrita por Ricky que estreou em 2012 e, caso você conheça e tenha gostado do tom, ‘After Life’ é essencial para você. Enquanto ‘Derek’ apresenta um personagem apaixonante e com uma pureza de espírito, o disjuntor vira nessa nova produção para um protagonista que é o oposto disso. Ainda assim, o programa aborda o luto do protagonista de forma realista, sem romantizar um personagem suicida ou debochar do sentimento obscuro que o ronda. Ele nos aproxima de Tony um pouco mais a cada episódio e descobrimos juntos a empatia e a esperança que foi perdida quando Lisa morreu.
A linha do tempo da série é muito direta e não há muitas camadas ao longo do episódio, mas até as coisas não-explícitas me propuseram reflexões. Nas entrelinhas, por exemplo, a trama mostra como grande parte dos homens têm dificuldade em seguir em frente quando perdem suas companheiras, seja com a morte ou com uma separação. As mulheres aparecem como figuras de esperança, compreensão e carinho, atributos que eram trocados entre Tony e Lisa dentro do lar. Talvez minha formação jornalística tenha me ajudado nessa próxima, mas nos episódios onde Tony sai para uma apuração jornalística, ele está tão focado em antecipar o quanto aquela pauta é inútil que perde completamente a sensibilidade para perceber que dentro de quase todas as casas existem outras histórias interessantes que precisam ser contadas.
A trama é curta, mas o roteiro envolve logo no primeiro episódio e, além da curiosidade natural para o desenrolar da história, vemos dicas frequentes de que a luz no fim do túnel existe (o apego dele pela cadelinha Brandy, o carinho com que ele trata uma desconhecida ou o amor e instinto protetor que sente pelo sobrinho) e torcemos para a recuperação de Tony. Isso tudo me lembra muito a abordagem da impecável animação BoJack Horseman, também da Netflix, quando aborda temas parecidos.
Para a nossa alegria, a série acabou de ter a segunda temporada confirmada e chegará à plataforma de streaming em 2020. Até lá, o que você me indica?
*publicado originalmente na edição impressa de 31 de julho de 2019