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#25 Descendo do salto

publicado: 05/12/2019 11h25, última modificação: 03/11/2020 11h25
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tags: gi ismael , Gi com tônica , mortal kombat , games


Não consigo correr de salto. Até danço vez ou outra, mas às vezes é esforço demais para pouca ou nenhuma recompensa. E como seria lutar de salto? Imagina se as lutadoras de MMA, Muay Thai, Taekwondo tivessem que entrar no ringue ou subir no tatame com um agulha de 15 centímetros? É, não faz muito sentido e finalmente os desenvolvedores de um dos mais importantes games de luta se deram conta disso.

Se você cresceu nos anos 80 ou começo dos anos 90, muito provavelmente jogou a sangrenta franquia Mortal Kombat no console do vizinho. O game trazia personagens, homens, mulheres, robôs e alienígenas, para um campo de batalha e foi com ele que eu comecei, ainda criança, a me acostumar com a sexualização do corpo feminino. Enquanto um ou outro personagem masculino lutava sem camisa para mostrar o viril e trincado abdômen, as mulheres todas usavam saltos e roupas provocativas com o intuito de mostrar sensualidade e não força, com estilo de luta e as poses que beiravam um erotismo que não existia nas figuras masculinas.

Sim, eram tempos diferentes. Mas Mortal Kombat continuou desde 1992, migrando entre estúdios mas mantendo o estilo sangrento e violento gradativamente mais pesado. Eis que finalmente em 2019, mais de 10 edições diferentes depois, o estúdio NetherRealm resolve dar uma diminuída na objetificação das personagens femininas de forma que a personalidade do game não fosse afetada. Passaram a pensar mais como desenvolvedores e menos como adolescentes na puberdade e foram analisar os trajes e o comportamento das mulheres do game de forma que fossem consistentes com a backstory de cada uma. Perceberam que muita coisa não fazia sentido, como por exemplo o retrato de Sonya Blade, uma tenente norte-americana das Forças Especiais em missão. Não que estas agentes não possam ser sensuais, mas quando no campo de batalha, Sonya vestia como uniforme uma roupa de academia ou, nos lançamentos mais recentes, um mini-colete com um decote que ia até o umbigo. Agora, dublada pela lutadora de MMA Ronda Rousey na versão original, ela se veste com algo que remete, finalmente, a um uniforme policial.

Não foi só a Sonya que mudou. Todas estão com os seios bem mais proporcionais e com um tanto a mais de pano no corpo e menos centímetros nos saltos (às vezes, nem salto tem). Algumas personagens continuam sensuais, como a rainha do submundo Sindel, que tem um quê de bruxa e um quê de vampira. Já a filha dela usa armadura, sem decotes. A guerreira Scarlet usa uma roupa que lembra as de ninjas, com o corpo completamente coberto. Para mim, o jogo se torna ainda mais interessante e me faz querer saber mais sobre a história e contexto de cada uma. Finalmente elas não parecem farinha do mesmo saco, com tons de pele ou de cabelo diferentes.

Há muito o que se falar sobre essa sede pela imagem de objeto do corpo feminino nos games e não é de hoje. Até quando os programadores não conseguiam fazer formas redondas, já achavam necessário uma protagonista avantajada e isso originou a bizarra Lara Croft com peitos poligonais. Graças às deusas, o desenvolvimento da personagem de Tomb Raider amadureceu e ela se tornou muito mais densa em games recentes da franquia e, veja só, mesmo com corpo proporcional e sem decotes e short curto, as pessoas se interessaram e o jogo bateu recorde de vendas.

Grata foi minha surpresa recentemente quando Red Dead Redemption 2, o western da RockStar Games que se passa em 1899, trouxe o sufrágio feminino em uma das missões paralelas. Mesmo que de maneira rasa, vemos a luta das mulheres pelo básico direito ao voto. Elas seguram placas, gritam palavras de ordem e marcham pelas cidades. E essa é a mesma RockStar que desenvolveu Grand Theft Auto III, em 2001, game em que era possível pagar por prostitutas virtuais.

Os jogos de videogame avançaram em tecnologia e capacidades narrativas, mas ainda a maioria das personagens femininas é retratada de forma hiperssexualizada ou como vítima, assumindo poucas vezes a posição de protagonista ou heroína. Vou te contar que já deixei de comprar jogos simplesmente por ficar cansada da representatividade chata e machista de sempre (Dragon’s Crown me fez revirar os olhos até as costas). Isso importa, e não é só por minha conta, claro. Nós, mulheres, já representamos 58,8% do público consumidor no país, de acordo com a Pesquisa Games Brasil 2019. A ironia é que, em 2016, a mesma pesquisa demonstrou que apenas 26,5% dos jogos analisados tinham personagens femininas jogáveis, e apenas 10,2% dos games possibilitavam a escolha entre os gêneros. Ainda, a representatividade, assim como os papéis designados, são diferentes entre os gêneros: as mulheres tendem a ser retratadas como objetos sexuais, por isso mais objetificadas, enquanto os homens são heróis musculosos.

Fugir do lugar comum e apostar mais em contar histórias é mirar no lugar certo. Que o diga Last of Us e Last of Us: Left Behind, assim como Life is Strange, Broken Age, e por aí vai. Assim como a mídia tradicional tem um impacto na autopercepção das mulheres, os videogames passam a carregar a mesma potencialidade quando passam a comandar a indústria do entretenimento. Nós, consumidoras, estamos também atrás de histórias empolgantes, anseios e desejos de outras mulheres, fictícias ou não, como nós.


*publicado originalmente na edição impressa de 04 de dezembro de 2019