Quando nascia em mim a vontade e a certeza de ser jornalista cultural, especialmente musical, eu via a história de William Miller, protagonista do filme Quase Famosos (2000), de Cameron Crowe, como uma inspiração. Eu me enxergava como correspondente de uma revista musical, viajando com bandas em turnês e acompanhando, meio no formato “gonzo”, meio como observadora, a dinâmica vida de artistas. Quando, de fato, comecei a trabalhar com cultura e conhecer de perto artistas de diferentes contextos e projeções, minha ótica romântica foi dando espaço para uma visão pragmática e empregatícia da coisa toda, todos os corres e perrengues (mas, claro, sem me esquecer da beleza que envolve fazer arte). Foram cerca de dez anos trabalhando na área, entrevistando por telefone, pessoalmente, em estúdio, no palco, em hotel ou em casa; mas só quando saí das redações e assumi o papel de produtora cultural é que passei por uma experiência “William Miller”. Recentemente, pude acompanhar Cátia de França e sua banda numa temporada de shows em São Paulo.
Mas além do rock’n’roll, não há nada que ligue a fictícia banda Stillwater à potência máxima que é Cátia de França, então podem deixar a analogia de lado. A paraibana, hoje com 76 anos de idade e 50 de carreira, é de um poderio quase tátil; ela é a própria literatura e musicalidade em suas mais revigorantes formas. Lá estava uma compositora e musicista visionária, uma mulher paraibana, preta, idosa e LGBT mostrando sua música autoral para uma diversificada plateia. Foram quatro dias seguidos de shows, com participação dos pernambucanos Jorge du Peixe e Alessandra Leão e dos paraibanos Luana Flores e Pedro Indio Negro. Foram quatro dias de Itaú Cultural com todos os assentos ocupados, com plateia escorrendo lágrimas de emoção e esboçando sorrisos sinceros. Foram quatro dias de aprendizados e trocas difíceis de esquecer.
Ao longo dessa curtíssima jornada, foram muitas horas de conversas sobre basicamente tudo que existe sob o sol, mas, eventualmente, o papo se voltava para, claro, arte e cultura. De um lado da mesa do café, Luana Flores, com uma visão empreendedora e instigante de sua própria carreira e da forte cena da nossa região, estava com a agenda lotada com seu projeto Nordeste Futurista (foi para o RJ, SP, MG e Argentina em poucos dias); do outro, Dina Faria, diretora de produção de Cátia de França e de diversos outros projetos, ativista e forte agente cultural na Paraíba, se desdobrava para fazer a mágica acontecer in loco; ao nosso lado, a sábia Cátia envolvida em seus rituais matutinos, contadora de histórias, causos e proporcionadora de inúmeras risadas.
No mesmo hotel, encontramos a Mestra Penha Cirandeira, que durante todo o mês de junho estava com agenda lotada de atividades e shows na capital paulista ao lado de Mestre Jurandir e Zé Silva. Não encontramos Bixarte que estava em São Paulo para comandar um trio elétrico na Parada LGBT, mas encontramos sua equipe. A cultura da Paraíba é forte, riquíssima, e isso não é segredo. Nos encontramos com músicos, atrizes e produtores paraibanos e, como num grupo de apoio, todos desabafaram sobre as dificuldades de se viver de arte ainda hoje na Paraíba. E o que falta para que pessoas como Luana, Penha, Cátia e Bixarte sejam mais requisitadas em seu próprio estado, e, principalmente de forma digna, com cachês justos e tratamento humanizado?
Usar São Paulo como exemplo pode parecer injusto uma vez que se trata da maior e mais rica cidade do nosso gigante país – mas aqui vem a pílula de obviedade: fomentar a cultura é sim obrigação e dever do poder público, seja qual for o PIB do estado ou município em questão. É preciso um patamar para que tenhamos projeções de cenários ideais e, bem, temos um longo caminho pela frente na Paraíba. Faltam aparelhos culturais com agenda constante, falta profissionalização de trabalhadores da cultura e falta interesse das iniciativas pública e privada para com um dos setores que mais traz retorno à sociedade. Iniciativas como a Lei Paulo Gustavo são um respiro diante de um cenário tão escanteado quanto o da cultura e precisam vir como o (atrasado) pontapé inicial de uma reviravolta geral. Talento e artistas, vai por mim, não faltam – e a invasão paraibana ao Sudeste no último mês, sem inclusive ter necessariamente relação com o São João, são prova disso.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de junho de 2023.