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#166 É assim que se faz uma adaptação – parte 1

publicado: 15/02/2023 00h00, última modificação: 23/02/2023 10h25
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Bella Ramsey (E) e Anna Torv (D) encarnam a Ellie e Tess, respectivamente - Foto: HBO/Divulgação

tags: gi com tônica , the last of us , hbomax

por Gi Ismael*

Poucas vezes a gente pode falar que uma adaptação é melhor do que a obra original, por melhor que esta seja. Perdi as contas do quanto eu defendi o jogo The Last of Us, afirmando categoricamente que ele é, para mim, uma das melhores experiências audiovisuais e narrativas que já consumi. Há poucas semanas, escrevi aqui na coluna como em apenas um episódio já era possível sentir que aquela seria uma fortíssima adaptação. Hoje vou escrever um pouco sobre como os episódios 2 e 3 cumprem esse responsabilíssimo papel – e o que torna a série da HBO ainda melhor que o game da Sony PlayStation.

Após os acontecimentos do capítulo de estreia, visitamos flashbacks que contextualizam a pandemia e é aqui que vai ficando claro como o fungo mutante foi disseminado. Enquanto o jogo dá dicas de que colheitas contaminadas na América do Sul originaram o surto, sem especificar quais alimentos, a adaptação aponta que o cordyceps havia sido identificado primeiro em um homem que trabalhava numa fábrica de farinha de trigo na Indonésia. A escolha aqui foi, em mais um acerto, específica. Isso porque a farinha de trigo, há dezenas de milhares de anos, é o alimento mais cultivado e consumido no mundo. Quer uma melhor propaganda antiglúten que essa?

Sobre os infectados em si, temos uma mudança nos roteiros: o jogo não trabalha com a ideia organismos conectados entre si e tem o conceito dos “esporos” (são como pólens no ar, que se aspirados, infectam os humanos) como uma das justificativas para a infecção massiva. Os produtores da série contaram em entrevistas que não queriam os atores usando máscaras e optaram por apresentar um novo tipo de mutação simbiótica no fungo (não ouse pisar em um pedaço dele ou será surpreendido por uma horda de zumbis). Curiosidade: o maior ser vivo do planeta é um fungo que mede cerca de quatro quilômetros de extensão.

O capítulo segue pelo início da jornada do casal Joel e Tess e da “missão” Ellie. Com a direção belíssima do episódio, vemos a garota como um sinal de esperança, posicionada em fachos de luz em algumas cenas, e Joel na escuridão, ainda não convencido de que esta deveria ser uma tarefa dele, que procura enxergar Ellie como uma mercadoria. Se você está lendo isso aqui, já sabe: nesse episódio Tess morre pelas mãos – ou língua – de infectados. No jogo, ela é alvejada pela Fedra, mas esse detalhe é indiferente nas tramas.

No episódio seguinte, Joel e Ellie seguem à procura de Bill e sua caminhonete. As relações dos dois começam a se estreitar e chegamos na história mais emocionante de The Last of Us até então: Bill e Frank. A melhor escolha de Druckman e Mazin foi ter tornado a história implícita do improvável casal em uma história de amor possível, humana, repleta de erros e acertos. Nas entrelinhas do jogo, os dois parecem um casal fracassado, repleto de ódio e frustrações. Frank não suporta mais a vida com seu companheiro e tira a própria vida. É um roteiro vazio, que se foca muito mais no personagem caótico que é Bill do que em sua história. É linda a abordagem de toda a construção do casal, é real, é natural, é envolvente e apaixonante.

Foi interessante assistir os capítulos dois e três e me distanciar cada vez mais do game, enxergando realmente a obra como uma “entidade” à parte. Esse episódio 3 me fez desencanar da ansiedade de apontar, em tempo real, take a take do jogo. A adaptação criou uma forma própria, mais polida e refinada do que sua original. Afinal, 10 anos podem mudar bastante a visão de um roteirista e isso já havia sido mostrado na sequência The Last of Us - Parte 2 – aqui eu fico encucada se conseguirão, de fato, “melhorar” a história.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 15 de fevereiro de 2023.