por Gi Ismael*
Quantas vezes uma mesma história cruel precisa ser contada?
Há algumas semanas, a Netflix lançou Dahmer: Um Canibal Americano, minissérie criada por Ryan Murphy e Ian Brennan que narra o antes, o durante e o depois de um dos mais deploráveis, horrendos e frustrantes capítulos da história contemporânea: os anos em que Jeffrey Dahmer assassinou 17 meninos e homens na cidade de Milwaukee, nos Estados Unidos da América.
Já em sua primeira semana, a produção havia quebrado o recorde de maior audiência de estreia na plataforma. Se histórias de crimes reais chamam atenção, a deste serial killer vai além quando a crueldade dos atos é inimaginável até para as mais assustadoras ficções. O “Monstro de Milwaukee”, como ficou conhecido, cometeu assassinato, praticou necrofilia, experimentos e canibalismo em suas vítimas, em maioria homens gays negros e não brancos, de idade entre 14 e 30 e poucos anos.
Estes assassinatos, de fato, não são casos corriqueiros e, justamente por isso, foram exaustivamente abordados em filmes, séries e documentários – foram feitas, pelo menos, 15 produções audiovisuais nas últimas décadas sobre Dahmer, isso sem contar com os inúmeros vídeos e podcasts amadores que podem ser encontrados na internet. E a nova minissérie da Netflix não é tímida em recriar e criar os acontecimentos da forma mais violenta possível.
Muitas pessoas estranharam o nome de Ryan Murphy na série. Membro da comunidade LGBTQ+, ele é um dos maiores produtores da atualidade e suas séries como Pose e Glee esbanjam representatividade da bandeira colorida e sua história. Como alguém como ele poderia escolher abordar um período horripilante que mirou sua própria comunidade? E, já que aceitou mais um projeto de true crime (lembrando que Murphy é um dos criadores de American Crime Story), como seria a abordagem?
É nítido que ela foi montada para prender a audiência, já que o serviço de streaming quer que seu público seja fisgado de imediato e maratone os episódios, como “denunciou” recentemente Neil Gaiman no Twitter. Não é bizarro que escolheu-se como seria mais chocante contar uma história verídica para que um contrato milionário continuasse? Mostrar ainda no primeiro episódio a cabeça decepada de um homem negro, guardada dentro de um freezer, era algo necessário na narrativa que teoricamente queria se focar na história das vítimas?
Esse é um ponto chave. Da forma como se vendeu, a minissérie seria a primeira a abordar mais incisivamente como o privilégio branco, o racismo e a homofobia permitiram que Dahmer continuasse seus crimes ao longo de décadas. E isso, de fato, a série fez. Mas, indo além, a produção seria uma plataforma onde as vítimas teriam suas histórias contadas, seus nomes mencionados e honrados. Mostrá-los sendo torturados e mortos em longas e sufocantes cenas não me parece o caminho para isso. E não há fotos em preto e branco e memorial no final do último episódio que apague isso.
Me soou bastante hipócrita trazer nos episódios finais a luta das famílias das vítimas para que nenhum lucro fosse feito em cima da história do assassino quando, trinta anos depois, estas mesmas famílias não foram consultadas antes ou durante as filmagens. Quando a mesma plataforma que critica quem fez dinheiro lá nos anos 1990 em cima do sofrimento das vítimas, repetiu o que criticou.
Preciso dizer que não acredito que Dahmer: Um Canibal Americano glamourize a figura do criminoso, mas ela por vezes é tendenciosa ao jogar detalhes sobre o serial killer que faz o público escavacar motivos do porquê ele foi tão cruel (ele era alcoólatra, ele teve uma infância difícil, ele drogava suas vítimas antes, não era tão cruel assim). A glamourização está vindo por parte do público, mesmo. Não é difícil encontrar nas redes sociais, em especial no TikTok, pessoas se fantasiando de Dahmer, usando acessórios com o rosto dele, falando como sentiram pena ou que enviariam cartas para ele caso ainda estivesse vivo. É, para um homem branco que fez um furo no crânio de um jovem de 14 anos, enquanto ele estava vivo, e aplicou ácido no cérebro para que ele se tornasse um zumbi. E fez 16 outras vítimas. Ele sabia que a polícia não iria atrás de investigar esse crime como iria se fossem pessoas brancas as mortas. Dahmer era racista (outro ponto que a série peca em mostrar), pedófilo, abusador.
Já escrevi por aqui algumas vezes como me fascinam as histórias de true crime. Mas confesso que por tudo que envolveu, essa pesou de uma forma diferente e me fez querer dar um tempo nessas narrativas. É importante lembrar que a série não é uma ficção, ela é baseada em fatos reais e conta uma história que ainda reverbera na cidade de Milwaukee, que prefere esquecer tudo que aconteceu. Não seria justo honrá-las?
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 19 de outubro de 2022.