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#147 Este é mais um texto sobre ‘Não! Não Olhe!’

publicado: 21/09/2022 09h00, última modificação: 21/09/2022 09h19
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Filme de ET é uma alegoria à visibilidade

tags: não! não olhe! , jordan peele , sci-fi , ficção científica

por Gi Ismael*

Aviso prévio: este texto contém revelações importantes da trama do novo filme de Jordan Peele. No melhor internetês: está carregado de spoilers.

Peele fez sua estreia como diretor chegando com os dois pés na porta. Corra (2017) foi um tremendo thriller psicológico, um filme inventivo, empolgante, engajado, sarcástico e com inserções perfeitas de alívio cômico. Uma produção necessária nas listas dos melhores suspenses do século 21, ao lado do próximo título na filmografia do diretor estadunidense: Nós (2019). Com o filme até mais sombrio e denso do que o anterior, tão bom quanto (se não melhor), estava mais do que instaurada a expectativa para o que viria em seguida. E veio um tema que toca no coração dos entusiastas da ficção científica: alienígenas!

Provavelmente, concordamos que o último grande filme sobre ETs lançado nos últimos anos tenha sido A Chegada (2016), de Denis Villeneuve. Apesar de acreditar que Não! Não Olhe!, o novíssimo título de Peele, não alcance o mesmo patamar da obra de Villeneuve, o bastão foi passado para a equipe certa.

Em Não! Não olhe!, uma espécie de disco voador começa a sobrevoar uma pequena zona rural na Califórnia, Estados Unidos. No lugar praticamente inabitável, vivem dois irmãos, OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer). Sem saber como reagir, eles decidem documentar o fenômeno para, quem sabe, lucrar e conseguir salvar a fazenda e o negócio familiar da falência após a morte misteriosa do patriarca Otis (Keith David).

Os Haywoods trabalham há décadas com cavalos, domando e utilizando os equinos em produções audiovisuais, sejam elas filmes de faroeste ou propagandas de iogurte. O filme é dividido em cinco capítulos, quatro recebem os nomes dos principais cavalos da família (Ghost, Clover, Lucky e Jean Jacket) e um dedicado a Gordy, um chimpanzé que estrela a primeira cena do filme.

Quando saí do cinema, fiquei bastante pensativa sobre a figura de Gordy na trama. Porque são claras as conexões entre os cavalos e o alienígena (particularmente acho esse conceito da nave que não é nave, mas sim extraterrestre, o mais legal do filme), mas Gordy me pareceu solto. Até pensei brevemente que ele fosse um alienígena mensageiro (risos).

Foi numa conversa pós-filme, aqui na redação, que todas as peças se encaixaram: o chimpanzé é mais um retrato de como, sem se dar conta ou menosprezar os riscos, o ser humano explora outras criaturas a fins de entretenimento com a falsa ilusão de superioridade racional e poder de dominação. Seja no uso de um macaco numa sitcom, de cavalos nos set de filmagens ou de alienígenas esfomeados na Oprah Winfrey.

Assim como é real a história do jóquei anônimo, um homem negro, que cavalgou a égua Sallie Gardner para o curta de Cavalo em Movimento, de Eadweard Muybridge, em 1878, as similaridades da história do primata Gordy com Travis, um chimpanzé adquirido por americanos nos anos 2000, é assustadora. Travis foi comprado por um casal e vivia uma vida domesticada, com direito a roupinhas e aparições em programas de televisão e comerciais. Em 2009, após ingerir pílulas achadas em casa, o macaco passou por um ataque de fúria e desfigurou rosto e mãos de sua tutora, e, em seguida, foi executado a tiros. A mulher sobreviveu e, meses depois, trajada com um chapéu e véu cobrindo partes de sua face, cedeu uma entrevista a Oprah Winfrey (como não lembrar ainda da absurda série documental A Máfia dos Tigres?).

Essa costura da história é a cereja do bolo. Mas Não! Não Olhe! se destaca ainda pelas atuações carismáticas, direção de arte e desenho de som. Destaco, por exemplo, a forma final do alienígena, que como um polvo, se molda de acordo com o ambiente e o grau de autodefesa necessário, e ainda o horror quando o monstro sobrevoa a casa dos Haywood e a única coisa que se ouve são os gritos agonizantes de suas presas, humanos amontoados no interior da besta, esperando a morte chegar. Até o fato de que as questões raciais, geralmente pautadas por Peele, apareçam no filme sem que sejam o mote principal, vem em bom tempo quando uma de suas missões é simplesmente naturalizar pessoas pretas enquanto protagonistas em qualquer que seja a história, em qualquer que seja o papel.

O passo do filme é um pouco descompassado. No geral, ele vai trotando até chegar no ápice, mas tem algumas arrancadas e outras arrastadas que podem cansar o público. Mas para mim, a única coisa ruim da obra, que nem é culpa dela, foi o título em português. Vocês sabem que fazer piada com algumas traduções de títulos quando filmes, livros e afins estrangeiros chegam por aqui é algo intrínseco na cultura brasileira. Mas o que fizeram com Nope, eu já acho ruindade. Requintes graves de sadismo você entregar um ponto essencial para entender o comportamento animalesco do alienígena logo no título. Foi que nem o excelente suspense tailandês de 2008 cujo título original pode ser traduzido para algo do tipo Obturador captura o espírito, que, por sua vez, foi reduzido apenas a Shutter (de obturador da câmera fotográfica) na versão americana, e em português recebeu o megaspoiler de Espíritos: A morte está ao seu lado. Ou ainda o livro Salem’s Lot, de Stephen King, traduzido para o português como A Hora do Vampiro. Era melhor que fosse Nope mesmo. Até Na na ni na não seria melhor.

Brincadeiras à parte, estamos num ponto em que, independente do título em português, se Jordan Peele assumir a direção numa pornochanchada, eu vou comprar ingressos para a primeira sessão.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 21 de setembro de 2022.