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#64 Eu nasci na década errada

publicado: 11/09/2020 10h53, última modificação: 03/11/2020 11h25
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- Foto: Foto: Gi Ismael

 

Era isso que eu dizia para meus colegas da escola com o típico ego inflado adolescente: "eu nasci na década errada". A minha certeza para tal constatação era puramente baseada no meu gosto musical, herdado em doses cavalares pelo meu pai. The Beatles, Led Zeppelin, Black Sabbath, Queen, Rolling Stones, cresci, como milhares de pessoas, ouvindo todos os clássicos do rock. Meu gosto, assim como dos meus irmãos, foi ganhando mais influências que começavam dentro de casa e iam brechando as janelas em busca de outras notas, ritmos e timbres por aí. Mas eu insistia: tinha certeza de que havia nasci na década errada.

Errada estava eu, não a década. Consegui enguiçar e desenguiçar essa mania de achar sempre que uma época passada era melhor do que a minha própria (falei disso na coluna do dia 19 de agosto, lembra?). Foi nascendo no comecinho dos anos 1990 que pude me tornar quem eu sou -- e se tem uma coisa que sou, é feliz por ser quem sou. Sacou?

Não fosse aquele sonzinho microsystem que eu usava na minha infância, pirateando em fitas k7 músicas que tocavam na rádio, intercaladas com narração dos "primos Ismael", provavelmente eu não teria hoje em meu currículo passagens por emissoras radiofônicas da Paraíba. Não fossem as tardes assistindo MTV depois do colégio sonhando em ser VJ e as primeiras experiências com TekPixes da vida, ainda adolescente, provavelmente eu não teria me arriscado a ir para a frente das câmeras ser repórter e apresentadora. Não fosse o computador gigante que era dividido entre todos os cinco membros da família e que só tinha acesso à Internet discada no fim de semana e feriados, fazendo com que eu escrevesse qualquer coisa no Microsoft Word só para passar o tempo, provavelmente eu não teria sido repórter de jornal impresso e, bem, colunista como vocês bem sabem.

Talvez eu esteja completamente enganada. Talvez não. A verdade é que o meu gosto musical old school moldou, sim, um pouco de quem sou hoje. Mas foram todas as horas de Last.FM, buscas na Internet, torrents, blogs e playlists que tiveram um papel bem mais decisivo e amplo para essa Gi quem vos escreve.

Mas, claro, nem só de trabalho se faz uma mulher. Viver a infância nos anos 90 e adolescência nos anos 2000 me permitiu conhecer o mundo pela "Barsa" e entender mais dele pelo "Cadê" até conseguir desbravar terra e mar via Google Earth. Com emuladores no PC, joguei games de épocas quando eu não era nascida e fui crescendo junto com as novas gerações de consoles me descobrindo como gamer e entusiasta de gêneros específicos como RPG, aventura e corrida de carros. 

Troquei cartas, mas também mensagens no mIRC, no MSN, por SMS e no Facebook, fiz amigos de décadas e acumulei lições sobre relações humanas e sobre mim. Lembro com nostalgia das primeiras experiências com redes sociais como Fotolog, MySpace e Orkut e penso que as coisas não são tão diferentes assim hoje em dia. Nem que eram realmente tão melhores na década de 1960. Principalmente para uma mulher, principalmente para uma jornalista e artista, principalmente por ser a década do início do golpe militar.

A questão é que um ano -- ou uma década, no caso --, não se faz apenas das suas promissoras bandas e artistas. Quem dera fosse assim. A política ocidental capitalista é quem dita, quem impõe e quem vigia nosso modo de ser. Com grandes poderes… vocês já sabem. Nesse sentido, os anos 1960 eram tão sombrios quanto os de hoje. 

Tivesse nascido na época errada, não teria tido os pais que tenho. Os irmãos que tenho. O marido que tenho e toda nossa família que se formou. As amigas e amigos da vida toda, as "prirmãs", os tios e tias queridos. Tivesse nascido em qualquer outro lugar e data que não os meus, não teria nada disso. Não estaria aqui. E eu não troco isso aqui por nada. 

Daqui a menos de uma semana, completo 29 anos de idade já de braços abertos para a chegada dos 30 em 2021. Eu e os meus seguimos ilesos na pandemia. Não mais penso no passado que poderia ter sido. Agradeço agora por viver junto com eles numa época onde poderei comemorar meu aniversário com todos, mesmo que olhando através das telas dos nossos smartphones. 

*publicado originalmente na edição impressa de 09 de setembro de 2020.