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#61 Fabulosa “Kiki de Montparnasse”

publicado: 19/08/2020 09h29, última modificação: 03/11/2020 11h25
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tags: kiki de montparnasse , graphic novel , hq , gi ismael

Ah, a Paris dos anos 20! O berço da boemia europeia, destino de artistas do mundo inteiro que estavam em busca de ação e inspiração em cabarés e universidades da capital. Para muitos, a “Era Dourada”. Foi nesta época onde viveram na Cidade Luz artistas como Hemingway, Picasso, Dali, Modigliani e Duchamp. Dentre tantos nomes clássicos, uma figura central ficou nos bastidores de muitas narrativas: a fabulosa Alice Prin, a Kiki de Montparnasse. 

Conheci a vida da artista lendo uma reedição da HQ biográfica Kiki de Montparnasse, publicada originalmente em 2008 pela Casterman. Esta foi a primeira graphic novel escrita por José-Louis Bocquet, ilustrada pela veterana Catel Muller. O quadrinho ilustra décadas da vida de Kiki, considerada a Rainha de Montparnasse, a partir de uma bibliografia de 90 títulos que falam sobre a França daquela época, dezenas destas que citam Kiki como figura chave. Desde seu nascimento em 1901 na pequena vila francesa de Châtillon-sur-Seine à sua morte nos anos 50 na Grande Paris, conhecemos o espírito livre, aventureiro e artístico de Kiki, assim como pontos depressivos e carregados de vícios em sua agitada vida. 

Não há muita margem para discussão quando se diz que Kiki foi uma das mais emblemáticas figuras dos anos 1920, mas que ao mesmo tempo a Rainha de Montparnasse não recebeu o destaque que tiveram outras figuras (masculinas) da mesma era já citadas por aqui. Após ler Kiki de Montparnesse, fui assistir Meia Noite em Paris (2010), de Woody Allen, numa daquelas expectativas de enxergar a obra com outros olhos (além de procurar por Kiki). Ela foi uma figura marcante, singular, mítica de La Rotonde. Entretanto, nenhum sinal da vedete no roteiro de Allen. No filme, Marion Cotillard interpreta Adriana, uma encantadora jovem que, diferente de muitos personagens que aparecem no longa, nunca existiu. Na verdade, ela é uma mistura de mulheres como Kiki, Gala Dali e Zelda Fitzgerald, artistas despidas de seus sobrenomes e histórias próprias, normalmente vistas através dos olhos de seus companheiros. Em muitas narrativas, essas mulheres resumem-se a musas inspiradoras, talvez o exemplo quando dizem que “por trás de todo grande homem existe uma grande mulher”. Mas sempre que vejo pinturas antigas que ilustram mulheres anônimas, me pergunto quem era e como seria sua vida. Com a HQ, pude conhecer e enxergar Kiki como protagonista de muitas histórias, dela e alheias. 

Alice Prin, além de modelo e atriz, ganhou a vida como cantora, compositora, memorista e pintora. É ela quem é retratada em inúmeras obras de Kisling, Foujita, Man Ray e Maurice Mendjisky. Fez seu próprio dinheiro e viveu como quis. A francesa era tão avant-garde quanto poderia ser. Vivia relacionamentos abertos, era dona de seu corpo e de suas escolhas. Viveu numa época onde a chamavam de prostituta (apesar de nunca ter sido) por posar nua, sendo até presa quando tida como meretriz. Em 1929, escreveu uma autobiografia que continha introdução de Hemingway e Foujita, mas o livro foi banido por décadas. Apenas em 1996 suas memórias escritas foram reeditadas e enfim publicadas no mundo todo. Sim, era outra época. Mas seria uma época melhor?

Há uma passagem em Meia Noite em Paris onde o insuportável pseudo-intelectual personagem Paul fala sobre o saudosismo de épocas não vividas: “nostalgia é negação. Negação do doloroso presente. O nome usado para essa negação é ‘o pensamento da era dourada’ — a errada noção de que um diferente período no tempo é melhor do que se está vivendo — é uma falha na romântica imaginação daquelas pessoas que acham difícil lidar com o presente”. 

Quantos clássicos cabem numa sala? Em passagens da graphic novel e do filme, sonhamos sobre os encontros boêmios desses grandes artistas num mesmo ambiente. Me faz pensar que, hoje em dia, não temos menos talentos. Vivemos apenas num universo muito maior de pessoas -- tanto online quanto offline. Quantas “Kikis” são resumidas a musas e têm suas histórias, suas artes e suas vivências esquecidas ou ignoradas? 

*coluna publicada originalmente na edição impressa de 19 de agosto de 2020.