Lá em casa, nos anos 2000, as coisas funcionavam mais ou menos assim na hora do almoço: os cinco (eu, minha irmã, meu irmão e meus pais) assistíamos ao Jornal Hoje na televisão pequenina da cozinha ou era oficialmente dada a largada para ver quem dos filhos preparava o prato primeiro para correr para sala e dominar o controle da TV a cabo. Esse pequeno privilégio de ter canais fechados resultou num consumo frenético de sitcoms e outra séries que nos apresentaram ao entretenimento norte-americano. Mad About You, CSI, Lost, Married With Children, Friends, Seinfeld. Junto com a MTV, acredito que todos me levaram para o mal caminho de querer escrever sobre cultura.
O meu tempo era dividido ainda com canais infanto juvenis e, você sabe, as coisas não eram on demand como hoje em dia. O resultado foi que perdi o timing de assistir grandes séries da época ou pela falta de uma boa Internet e a possibilidade de downloads, ou pela falta de idade, ou por simplesmente perder o horário da transmissão. Gilmore Girls, uma favorita da minha irmã, foi uma delas. Vinte anos depois de sua estreia, graças aos streamings comecei a assistir o sucesso criado por Amy Sherman-Palladino. Já nos primeiros episódios compreendi sem esforço porque esta continua sendo uma preferida do público mesmo 13 anos após o seu término.
Gilmore Girls é o retrato de uma vida comum de uma pequena cidade dos Estados Unidos ou de quase qualquer outro lugar do mundo. Meu marido criou uma teoria de que a cidade fictícia de Stars Hollows, em Connecticut, é na verdade Araçagi, interior da Paraíba, e que as garotas Gilmore na verdade são garotas Lucena. Mas essa história fica para outro dia. Bem, a trama: Lorelai Gilmore (Lauren Graham), filha única de um riquíssimo casal da alta sociedade, vira mãe aos 16 anos de idade. Sem apoio dos pais ou do namorado, ela foge de casa e começa ainda grávida a vida do zero, morando nos fundos de uma pensão até ter estabilidade financeira e comprar sua própria casa. Mas não acompanhamos isso cronologicamente: a série já inicia com Rory (Alexis Bledel), a filha da protagonista, aos 16 anos de idade entrando numa escola particular, e o ponto de partida da trama é justamente a reaproximação de Lorelai com seus pais numa espécie de troca por bancarem os estudos da neta.
Em Gilmore Girls nada e muito, ao mesmo tempo, acontece. Quando se coloca a série comparada a outras dramédias como Desperate Housewives, The O.C. ou Gossip Girl, falta aquele exagero da narrativa com grandes reviravoltas, mistérios e mortes chocantes. O foco e o grande diferencial da produção são os personagens, a química perfeita entre eles e seus defeitos, qualidades, evoluções e teimosias, moldados de tal forma que parecem ser pessoas reais. Os diálogos ininterruptos e planos sequência presentes em todos os episódios criam uma estética única com um belo carimbo de autenticidade. E ainda mais importante: o retrato das dinâmicas familiares.
Em Stars Hollow existem muitos tipos de famílias, quase todas disfuncionais em algum aspecto. As relações entre a rigorosa criação cristã de Lane e a Sra. Kim comparadas com o cotidiano anárquico cheio de tradições de Rory e Lorelai parecem contrastantes até que, ao longo das temporadas, percebemos que Rory rebela-se e tenta fugir das expectativas criadas tanto por sua mãe quanto por sua cidade inteira. A quebra acontece progressivamente: a escolha de uma namorado “bad boy”, a ida para uma faculdade diferente da que sonhava, o contexto da perda de sua virgindade e por aí vai.
Entretanto, algumas coisas não envelheceram bem na série, como por exemplo o elenco majoritariamente branco. Por mais que seja “desconstruída” para a época (2000 - 2007), ao longo dos seus 153 episódios estão presentes ainda ocasionais tiradas gordofóbicas, homofóbicas e sexistas, mesmo tendo personagens gays, gordos e, claro, mulheres. O programa também não vai passar no teste de Bechdel: muita coisa gira em torno de garotos e namoros. Mas que bom que meu pensamento crítico me faz enxergar isto hoje em dia, sinal de que as coisas não estão tão normatizadas quanto antigamente.
É, muito mudou de 2000 para cá e, ainda assim, a série conta histórias com as quais conseguimos nos identificar em diversos aspectos. Acima de tudo, assistir Gilmore Girls me trouxe uma nostalgia gostosa. Resgatou saudades da época de estudante, da inexistência de boletos para pagar, das disputas pelo banco da frente do carro. Sinto falta não "até", mas principalmente da nossa boa e velha dinâmica familiar: a corrida para ver qual dos filhos alcançava primeiro o controle da TV a cabo.
*coluna publicada orginalmente na edição impressa de 25 de novembro de 2020.