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#2 Guava Island: crítica, arte e revolução

publicado: 08/05/2019 10h11, última modificação: 03/11/2020 11h26
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- Foto: Reprodução/AmazonPrime

tags: guava island , gi ismael , gi com tônica

(coluna originalmente publicada na edição impressa de 08 de maio de 2019)

(Esse é um texto livre de spoilers, relaxa.)

“Onde existir amor, a guerra seguirá”. No mundo ficcional de Guava Island (2019), média-metragem lançado pelo Amazon Prime agora em abril, essa máxima faz parte de uma história que passou por algumas gerações de uma ilha. Uma animação nos traz um contexto para o filme logo de início: o lugar sempre viveu à base de amor e música entre seus moradores, até que a ganância fez com que Red, um empresário, explorasse a mais bela seda azul existente, apenas encontrada em Guava.

A narrativa se passa ao longo de um dia na vida de um jovem casal, formado por Deni Maroon, um músico apaixonado por Guava, que sonha com a pacificação do local através da música, e alterna entre os trabalhos de tocar na rádio da ilha (onde só as canções dele podem ser ouvidas) e carregar caixas nas docas da companhia do manda-chuva; e por Kofi Novia, uma costureira que sonha em sair de lá e ir em busca de um lugar melhor. Ambos, assim como todos os moradores da ilha, trabalham de domingo a domingo.

O filme traz um apelo ao público jovem-adulto, uma vez que é estrelado por dois grandes nomes da música negra norte-americana, os protagonistas Childish Gambino (a persona artística-musical do multiartista Donald Glover) e da diva pop Rihanna. Mas não pense que isso tornaria de alguma forma uma produção amadora: enquanto Rihanna tem em seu histórico atuação que renderam críticas positivas por produções como o filme Oito Mulheres e Um Segredo (2018) e série Bates Motel (2017), ela assinou a direção de quatro de seus videoclipes; o quadro inverte com Donald Glover, já que seu trabalho como ator e diretor vem em primeiro plano. Ele é protagonista e criador da série Atlanta, até agora o grande marco de sua carreira, mas já atuou na série Community, que alçou sua visibilidade, e em filmes como Han Solo: Uma História Star Wars e Homem Aranha: De Volta ao Lar.

Foi pensando no público-alvo que os executivos por trás do filme decidiram lançá-lo no festival Coachella no dia 11 de abril antes de liberá-lo na plataforma de streaming. Um público majoritariamente branco, com um contexto de privilégios, talvez tenha sido pego de surpresa com o fato de que uma temática tão densa tenha aparecido numa festa em que são celebrados os topos das paradas musicais e, quase na mesma proporção, os looks estrategicamente pensados para bombar no Instagram (vide Bruna Marquezine ou Pablo Vittar, duas das milhares de pessoas que passaram pelo evento).

Temática densa porque, apesar de construir todo um cenário aconchegante, com uma narrativa contada de forma parcimoniosa, gravado no nostálgico filme 16mm, abusando de estampas e cores quentes, traz críticas ao capitalismo e regimes autoritários ao longo de seus 56 minutos, em forma de texto ou música (pensando bem, foi uma bela sacada exibir o filme no festival). E se tem um elemento que é o mais importante neste filme é a música.

A trilha sonora é quase sempre diegética, ou seja, o que o público escuta faz parte da cena e os personagens também a escutam. Por ser um média-metragem apresentado como ‘um filme de Childish Gambino’, várias de suas músicas aparecem em novos arranjos, mesclando ou não com a versão original das faixas. É durante uma conversa entre os trabalhadores das docas que ele começa a cantar ‘This is America’ como uma resposta sarcástica a um sonho de um deles de ir morar nos Estados Unidos, pois lá tudo era possível. “América é um conceito. Qualquer lugar onde, para você se tornar rico, você precisa tornar uma outra pessoa ainda mais rica, é a América”, diz Deni, momentos antes de embalar o single.

Em Guava, Música é contraponto, Música é identidade, Música é amor e Música é revolução.

E não é assim na vida real? Deveria.

Apesar de ter um final que se torna previsível já no segundo ato do filme, isso não torna a experiência menos marcante. A história foi uma colaboração entre cinco artistas do ramo cinematográfico, todos que integram a equipe da série Atlanta (inclusive o próprio Donald Glover e seu irmão mais novo Stephen Glover). A direção é de Hiro Murai, parceiro na série e, mais além, nos mais assistidos clipes de Childish Gambino como o viral ‘This is America’, que ultrapassou a marca das 530 milhões de visualizações no YouTube. Essas pessoas juntas conseguiram criar uma sociedade ao mesmo tempo única e identificável, com um povo de veia musical e alma revolucionária, cercado por cenários de exploração trabalhista e de um lugar paradisíaco. O azul do tecido em contraste com a pele negra (100% do elenco). A paixão de Deni pela música e por Kofi, a independência dela, o amor por Deni.

Não vou contar o que acontece no filme além dessa introdução, mas realmente acredito que ele deva ser assistido por você. Se não pela temática, pela trilha sonora. Se não pela trilha, pela fotografia. Pelas atuações. Pela direção. Pela realização de que onde há guerra, o amor permanecerá.