por Gi Ismael*
Pinóquio, por Guillermo del Toro, é encantador. Lançado exclusivamente na Netflix, o filme de quase duas horas de duração vem com uma proposta que se afasta da clássica adaptação da Disney, de 1940, e se aproxima, com cuidado e reverência, à história escrita por Carlo Collodi em 1883.
Com direção do mexicano Del Toro em parceria com Mark Gustafson, a animação em stop-motion (ou seja, bonecos sendo fotografados quadro a quadro) já prometia desde de seu elenco: David Bradley como Geppetto, Ewan McGrgor dublando o Grilo Falante, e ainda Christoph Waltz, John Torturro, Ron Perlman, Tilda Swinton e Cate Blanchet, para citar alguns, dando voz a personagens no filme. A obra demorou 15 anos para ser feita, entre pré e pós-produção. Por si só, os aspectos técnicos são lindos, como a direção de arte, a animação e a trilha sonora. Mas é com o roteiro de Guillermo del Toro e Patrick McHale que a obra engrandece talvez mais do que se imaginava. Pinóquio é visivelmente talhado à mão, dos seus bonecos ao esmero com que a história é pensada e contada. Como o protagonista, ele acaba sendo perfeito em suas imperfeições.
O garotinho de madeira enxerga o mundo com a pureza de quem acabou de chegar, já com a curiosidade e percepção infantil literal. Consciente da sua condição física de não ser de carne e osso, ele se vê refletido na escultura que seu pai tanto esculpiu à perfeição. Olhando para o Jesus Cristo pendurado na cruz, ele simula o mesmo movimento, contente, sem saber todo o fardo que a imagem carrega. Ele vê no Jesus de madeira um semelhante.
Enquanto Pinóquio se enxerga em outras marionetes e estátuas, os adultos o comparam e depositam nele expectativas. Ele foi feito para ser atração circense, para preencher o vazio de um filho que morreu ou para ser um soldado imortal? Mais uma vez, vem a pureza da criatura feita em meio ao luto: onde quer que o menino esteja, ele apenas é ele mesmo.
A figura de Gepetto vem mais realista do que a bondosa interpretação da Disney. Ele aparenta ser a classe trabalhadora atuante durante as duas Guerras Mundiais. Ele é um senhor marceneiro bastante perfeccionista que demora anos para concluir o crucifixo, que ensina seu filho a catar as pinhas perfeitas, que é feliz por ter o filho perfeito. Pinóquio é cru como a estética do próprio boneco. Sem alegorias, o filme é direto ao ponto quando fala de fascismo com todas as letras. Ele constrói o cenário da guerra e o crescente autoritarismo nos detalhes: a cidade começa a ser tomada por pôsteres da propaganda política, o céu fica mais cinza e as saudações fascistas são mais frequentes até que Mussolini em si aparece na trama. Lembrou-me da forma como Taika Waititi aborda o nazismo em Jojo Rabbit (2021), com uma certa perspectiva infantil indo de encontro à seriedade e barbárie do contexto em que se passa.
O boneco não faz tanta questão de ser um garoto de verdade. Na verdade, é como se ele fosse o único que durante boa parte da trama se aceita como é. Isso é um ponto lindo no filme. Ele discorre sobre a morte tratando da vida, como luz e escuridão; ele trata de amor, de família, de bondade e da importância de seguir em frente. Pinóquio, ainda bem, não é mais apenas um conto moralista sobre como é feio mentir.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 11 de janeiro de 2023.