Notícias

#36 Lapidado, Adam Sandler atinge ápice dramático

publicado: 26/02/2020 10h07, última modificação: 03/11/2020 11h25
divulgação - joias brutas.jpg

Em ‘Joias Brutas’, Sandler é um joalheiro judeu enrolado em seus próprios esquemas de multiplicação de dinheiro - Foto: Foto: Divulgação

tags: joias brutas , adam sandler , netflix , gi ismael


Aos 25 anos, um jovem ator e escritor norte-americano estreava numa das maiores escolas de humor estadunidense: o programa Saturday Night Live. Foram cinco anos como parte do elenco, gradativamente cativando um público que se tornaria massivo. Não muitos anos depois, ele se consagrava como um dos mais bem-sucedidos comediantes de filmes blockbusters, sucessos de audiência anos a fio. A Netflix lançou um dado ano passado: mais de duas bilhões de horas de filmes desse ator foram assistidas só em 2019. Falo aqui de Adam Sandler. E foi já depois dos 50 anos China, Eslováquia e Polônia de idade que o artista assumiu o papel mais intenso e dramático de sua carreira, provando, definitivamente, ser muito mais do que uma piada recorrente em Choque de Cultura.

O thriller Joias Brutas (2019) é uma produção da Netflix lançada aqui no Brasil no fim de janeiro deste ano. Contextualizada em 2012, a narrativa gira em torno do joalheiro Howard Ratner, um judeu enrolado em seus próprios esquemas de multiplicação de dinheiro. Ele deve algumas centenas de milhares de dólares a Arno, uma espécie de “vilão compreensível” na trama, e, para quitar a dívida, tenta vender uma pedra preciosa provinda da exploração de mineradores da Etiópia, estimada em uma quantia de U$ 1 milhão.

O personagem de Sandler é o retrato daquela pessoa que ninguém quer ser. Ele tem uma baixa autoestima, um casamento de fachada, é hiperativo, workaholic e está à beira de desencadear uma Síndrome de Burnout. Apesar de ter uma loja lotada de clientes, ele é tão ganancioso que não se contenta com as cifras em caixa e vai atrás de jogos de apostas e formas ilegais de pagar seus devedores. O filme todo é inquietante, angustiante, barulhento, um retrato perfeito de Howard Ratner. A trilha e a direção do longa, com planos longos e próximos do objeto, nos levam a passar pela experiência narrativa pelos olhos do protagonista: tudo ao redor dele parece acelerado e claustrofóbico e entendemos como a atitude dele é desproporcional com o ambiente quando, eventualmente, ouvimos um personagem falar “Cara, relaxa”, “Fala baixo” ou ainda “Por que você está gritando?”.

A trama é dirigida e escrita pelos irmãos Josh e Benny Safdie, jovens cineastas independentes que começaram a ganhar notoriedade em 2017 graças ao filme Bom Comportamento, estrelado por Robert Pattinson. Inclusive, os irmãos escalaram Adam Sandler ainda quando começaram a escrever o roteiro de Joias Brutas, em 2009, mas o ator recusou o papel. Ainda foram cotados Sacha Baron Cohen e Jonah Hill para o papel principal, mas após assistir o aclamado filme dos Safdie em 2017, ligou pedindo o papel de volta. Serviu como uma luva.

Talvez minha resistência quanto ao filme fosse maior há alguns anos, quando os papéis de quem fazia comédia e quem fazia drama eram bem dicotômicos. Me mantendo no espectro masculino da coisa, não fossem homens como Will Smith, Jim Carrey, Steve Carell e o próprio Adam Sandler quando protagonizou Embriagado de Amor (2012), de Paul Thomas Anderson, essa demarcação territorial ainda seria bem forte. Alguns filmes, ainda que besteiróis, já mostravam a capacidade interpretativa de Sandler, que calhou de se encontrar fazendo os mesmos personagens sempre e, com isso, conseguindo virar um milionário. Atores e atrizes ótimos, com uma direção certa e um roteiro ideal fazem maravilhas. E é exatamente isso que Joias Brutas nos presenteia.

Os diretores são judeus que viveram a vida inteira em Nova York e o filme tem um caráter biográfico quando é inspirado nos anos em que o pai deles trabalhou no Distrito de Diamantes de Manhattan. O enredo é cru e realista, apresentando ainda um elenco híbrido de pessoas reais e personagens fictícios (temos aqui o atleta Kevin Garnett e o cantor The Weekend interpretando eles mesmos, assim como pessoas que trabalham de fato no Distrito, e Lakeith Stanfield e Idina Menzel como personagens fictícios). Ainda que frenético e calcado na ganância humana, o filme, que tem produção executiva de Martin Scorsese, não usa a fórmula apelativa da violência excessiva, sexo e drogas aos montes.

Cinema, assim como qualquer arte, é sobre sentimentos e o que senti assistindo Joias Brutas foi exatamente o que os diretores quiseram que eu sentisse. Foi uma experiência parecida com a de Sinédoque, Nova York (2008), de Charlie Kaufamn, mas com menos drama e umas pitadas de comédia (a construção gradativa do roteiro de Kaufman sai a frente nesse quesito). Ambiciosas e sufocantes, essas não são obras para qualquer coração. Com um final que me fez torcer por um protagonista irritante, Joias Brutas atinge o ápice quando termina de forma surpreendente e brutal. Um filme necessário para quem gosta de sofrer com thrillers bem construídos.

*Publicado originalmente na edição impressa de 19 de fevereiro de 2020.