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#51 Minnesota é aqui

publicado: 03/06/2020 10h11, última modificação: 03/11/2020 11h25
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Dirigido por Camila de Moraes, o filme conta a história real de operário negro executado pela PM gaúcha ao ser confundido com assaltante

 

Desde o fim de semana, tento escrever sobre assuntos da cultura pop e simplesmente travo. Como falar sobre entretenimento quando passamos por um período onde assistimos em tempo real conflitos físicos, brutalidade policial, racismo e milhares de vidas se esvaindo por conta de uma pandemia? Como equilibrar o peso do momento histórico e nossa sanidade mental? 

Não tenho respostas para essas perguntas e tento aqui o melhor que posso. Mas é difícil. Díficil porque me sinto sufocada assistindo a minisséries como a recém-lançada Jeffrey Epstein - Poder e Perversão, que conta a vida do bilionário pedófilo que passou bons anos comprando a liberdade, e me sinto alienada quando paro para assistir a um episódio de De Férias com o Ex (pois é).

Lembro da época em que só assisti produções baseadas em acontecimentos reais e, como na maioria das vezes, carregadas de contextos políticos e sociais pesados, daqueles que fazem a gente se sentir uma formiguinha no meio de um vespeiro. Simultaneamente, digeri Olhos que Condenam, minissérie da Netflix que conta o caso de racismo que envolveu a condenação injusta e sem provas de cinco adolescentes negros norte-americanos nos anos 90; Chernobyl, minissérie da HBO que detalha o antes, durante e depois de um dos maiores acidentes nucleares da história; e Bandidos na TV, série documental contando a história de Wallace Souza, âncora de TV brasileiro que supostamente encomendava crimes para noticiá-los em primeira mão.

Pois bem. O audiovisual, nessa época, me drenou. Um deles, mais do que os outros: Olhos que Condenam. Isso porque o racismo está acima de toda e qualquer outra questão ou discussão social. É pauta primeira! E nós, aqui no Brasil, precisamos falar muito sobre isso ainda. E mais: precisamos parar para ouvir o que a população preta tem a dizer. Falando do cinema, temos nas listas de melhores filmes nacionais títulos impactantes que tratam a desigualdade racial do país, como Ó Paí, Ó (2007), Pixote (1981), Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007). Mas todos esses filmes são dirigidos e roteirizados por homens e mulheres brancos. Já passou da hora de ouvirmos essas e outras histórias contadas por uma outra parte da população que tem vivências completamente distintas apesar de morar no mesmo pedaço de terra -- e dar também o merecido holofote para estas produções. Percebe como Jordan Peele foi um sopro de ar fresco em Hollywood ao fazer filmes como Corra (2017) e Nós (2019)?

A Ancine divulgou em 2016 números sobre representatividade no cinema brasileiro. A pesquisa analisou mais de 100 filmes que entraram em cartaz no cinema comercial e revelou que atores e atrizes negros representavam apenas 13,3% dos elencos, enquanto mostrou ainda que as mulheres negras ficam de fora de categorias como diretoras e roteiristas. 

Você já ouviu falar em Camila de Moraes? A cineasta lançou em 2019 o filme O Caso do Homem Que Deu Errado, um grande cotado para representar o Brasil no Oscar. Foi graças a essa produção que foi quebrado um hiato de 34 anos sem que uma diretora negra aparecesse no circuito comercial de cinema brasileiro. Lembrando que mulheres negras representam quase 50% da nossa população.

Aliás, a única outra diretora negra a entrar no circuito foi Adélia Sampaio, que alcançou a lista com o filme Amor Maldito (1984). Ainda no ramo do audiovisual e só para citar mais um nome, temos o paulista Jeferson De (Bróder, 2010, M8 - Quando a Morte Socorre a Vida, 2018) na ativa desde os anos 2000 (será mesmo que não temos “Spike Lees” e “Ava DuVernay” no Brasil, como afirmou Antonia Pellegrino, ou simplesmente a indústria racista não dá espaço para que surjam profissionais com nome forte?).

Aguce a audição e a visão para atentar ao que essas e muitas outras pessoas têm a contar. E partindo para o óbvio que ainda precisa ser dito: no dia a dia, pense e aja para mudanças que partam de você. Seja antirracista começando pela sua estrutura dentro de casa. Dentro do seu trabalho. Na rua. Faça isso por João Pedro, Agatha, Kauê Ribeiro, Marielle e as milhares de vidas que escorrem em decorrência do racismo estrutural e das políticas de extermínio de nosso país.

*publicado originalmente na edição impressa de 03 de junho de 2020.