Domingo passado, a jovem Billie Eilish tornou-se a segunda pessoa da história a conquistar quatro Grammys nas mais prestigiadas categorias da noite: música do ano, gravação do ano, álbum do ano e artista revelação. Antes dela, só havia conquistado este feito o músico estadunidense Christopher Cross, em 1980. Também nunca ouvi falar nele. Mas a questão é que eles dois chegaram num lugar onde Stevie Wonder, Paul McCartney ou Nina Simone jamais chegaram (esta última, na verdade, só foi indicada a dois Grammys em sua carreira). Porque não é sobre a qualidade, necessariamente, e isso é algo bem relativo. É sobre a indústria, sobre o público e o que vende.
Não é surpresa nem novidade que, como tudo no sistema capitalista, o Grammy visa lucro. É mais um item que faz girar a roda da bilionária indústria da música e ele anda lado a lado com grandes produtores e chefões de gravadoras e selos internacionais. Também é um local onde há pouca diversidade de gênero e raça no corpo de jurados e, por essas e outras, o evento é cercado de polêmicas. A mais recente veio dias antes do tapete vermelho. Deborah Dugan, ex-diretora na premiação demitida há pouco tempo por “má-conduta”, processou o Grammy e fez uma série de denúncias que vão desde favorecimento de artistas em acordos prévios e manipulação do processo de indicação, a assédio sexual e omissão do comitê em frente a um suposto estupro cometido pelo ex-CEO da Academia, Neil Portnow. Vale dizer que Dugan foi a primeira mulher presidente da entidade e havia assumido o posto em agosto de 2019.
Quem decide os resultados da grande noite? São apenas 150 especialistas da Recording Academy que pré-selecionam 10.000 músicas para votação, num universo infinito de canções lançadas diariamente durante um ano. Feito isto, 12.000 pessoas da Academia analisam e elencam cinco candidatos, dentre esses milhares, em cada categoria. A peneira vai ficando mais fina até que 105 prêmios, dedicados a 28 gêneros musicais distintos (inclusive polca), são distribuídos na noite. A premiação é feita para que, de uma certa forma, seja fácil ser indicado em algum momento da carreira caso o artista tenha lançado algo que chegou perto dos charts da Billboard ou nas centenas de milhares de views no YouTube. Que vença quem tem os melhores produtores!
Esses são fatores que me fazem acreditar que essas premiações não devem servir de norte para o consumo porque, quando se coloca numa balança, o Grammy mesmo nunca foi muito bom em eleger músicas que se tornariam, mais cedo ou mais tarde, clássicos. O júri premia as músicas do momento, as canções que vão esgotar os ingressos para a turnê badalada e até lotar festivais de verão mundo afora. O Grammy, assim como as premiações mainstream estadunidenses que são transmitidas ao vivo para o mundo todo, como o Emmy e o Oscar, virou um ritual que vai além de ver um artista dando um discurso emotivo da vitória. Os espectadores anseiam por mais. Esperam ver os vestidos e as joias, as roupas provocativas e criativas, os penteados e maquiagens impecáveis. Os fãs querem ver seus ídolos no palco, em uma performance épica num palco bastante concorrido -- esse ano teve até K-Pop, para a alegria da geração Z.
É legal para o currículo e para o status citar que ‘fulaninha de tal’ ou ‘fulaninho de tal’ venceu tantas competições. Contanto que não haja uma rede podre de exploração seja lá de qual tipo for, deixa o povo ganhar o Grammy. Faz mal não. Deixa a bichinha da Billie Eilish também. Já pensou, você com 18 anos vencendo um Grammy? Para o júri, ela fez mais do que Michael Jackson quando foi indicado pela primeira vez graças ao disco ‘Of The Wall’, lançado quando ele tinha a idade próxima a de Eilish. Não vejo ‘Bad Guy’ se tornando uma nova ‘Don't Stop 'Til You Get Enough’ ou ‘Rock With You’. Mas, no fim das contas, nada disso importa.
*publicado originalmente na edição impressa de 29 de janeiro de 2020.