Notícias

#205 Não é sobre metodologia, é sobre o amor

publicado: 31/01/2024 12h26, última modificação: 31/01/2024 12h26
1 | 2
Cineasta belga Agnès Varda em ‘As Praias de Agnès’- Foto: Mubi/Divulgação
2 | 2
Realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho em ‘Retratos Fantasmas’ - Foto: Vitrine Filmes/Divulgação
As-Praias-de-Agnès.jpg
Retratos Fantasmas.jpeg

por Gi Ismael*

O ano era 2019 e eu assistia a uma sessão de Bacurau numa sala “VIP” de um cinema multiplex dentro de algum shopping. A exibição era particularmente especial porque lá, na mesma sala, estava parte do elenco do filme (Sônia Braga, Thardelly Lima, Ingrid Trigueiro e por aí vai) e um dos diretores do longa, Juliano Dornelles. Ao final do longa, começou um debate seguido de rodadas de perguntas. Alguém levanta a mão, empunha o microfone e faz uma observação, algo do tipo: “Notei que, em todas as cenas de sexo, as mulheres estão por cima. Essa  escolha foi pensando no empoderamento feminino presente no longa?”. Segundos de silêncio e o cineasta responde: “Na verdade nem notamos isso. Foi só porque era mais fácil filmar daquela forma. O plano fazia mais sentido”.

É, às vezes pode ser anticlimático ouvir um artista falando sobre sua arte, mas até a quebra da subjetividade me soa interessante de ouvir, mudando o foco da semiótica e mirando no fazer cinema sem perder de vista o processo criativo. Seja a visão mais pragmática ou poética, como diz Kleber Mendonça Filho em Retratos Fantasmas (2023), “não é sobre metodologia, é sobre amor”.

O documentário que citei acima coloca o próprio diretor como coadjuvante num ensaio sobre o cinema, seja fazendo-o ou consumindo-o. Mendonça abre as portas de seu antigo apartamento no Recife para mergulhar em sua filmografia num mosaico de imagens que alternam entre registros documentais e ficcionais. Desde filmagens caseiras com câmeras analógicas a registros feitos por um Smartphone, ou ainda trechos de filmes estudantis a produções de maior projeção como Aquarius e O Som ao Redor, Kleber conta de forma íntima como iniciou no cinema num local de forte identificação para quem faz cinema autoral no Nordeste. No segundo ato, o longa continua sua colcha de retalhos quando passeia pelo centro da capital pernambucana, transitando por prédios de cinemas antigos agora transformados em lojas de eletrodomésticos, igrejas, bancos e farmácias. Retratos Fantasmas não é um filme biográfico, mas usa da biografia de seu diretor e narrador para pensar o cinema enquanto termômetro da sociedade e registro temporal, relacionando não só o impacto da urbanização na forma como ocupamos a cidade, mas também como quadros políticos e religiosos atuam na nossa forma de consumir arte.

Por falar nesse cinema poético autoral autobiográfico, assisti, em dezembro passado, As Praias de Agnès (2008), que está disponível no catálogo do Mubi. O filme traz recortes da vida e obra (que diversas vezes convergem) da brilhante cineasta belga Agnès Varda, pioneira do movimento Nouvelle Vague. “Se você abrir uma pessoa, irá achar paisagens. Se me abrir, irá achar praias”, diz Varda no começo do filme. Foi naquele 2008, com 80 anos de idade, que Agnés escreveu, protagonizou e dirigiu este ensaio sobre sua própria filmografia, colocando as praias que ilustram seus longas como fio condutor para abordar sua vida desde a infância, refletindo sobre a passagem do tempo nas cidades e em si. Vê-la e ouví-la falar sobre velhice, família e trabalho, por vezes ofuscado pelo trabalho de homens contemporâneos, é uma experiência magnética.

O contexto de Agnès Varda e de Kleber Mendonça Filho são, claro, completamente diferentes. Mas ambos os filmes reconfiguram nossa forma de enxergar quem faz cinema, por um lado quebrando uma noção ideológica onde tudo precisa ter significado, e por outro refinando ainda mais as lentes poéticas com que enxergam e narram o mundo.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 31 de janeiro de 2024.