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#8 Nossa história contada em Guerras do Brasil.doc

publicado: 19/06/2019 00h00, última modificação: 03/11/2020 11h26
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- Foto: Foto: Reprodução

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Até soa como piada pronta, mas nunca fui uma pessoa da área de ciências exatas e biológicas. Na escola, preferia estudar Artes, Literatura, História. Era um desastre em químicafisicabiologiamatemática. Terminei o Ensino Médio e sabia de pronto que queria cursar Jornalismo, não por ser fraca nas matérias de Exatas, mas por ser apaixonada pelos assuntos de Humanas. No final de semana, devorei uma série documental da Buriti Filmes exibida pelo canal de televisão Curta! e que acaba de estrear na Netflix, a ‘Guerras do Brasil.doc’. Não que eu precisasse de ajuda nisso, mas ela me fez lembrar tudo aquilo que amo em conteúdo histórico e narrativas bem-feitas e interessantes.

‘Guerras do Brasil.doc’ é uma produção dirigida por Luiz Bolognesi, roteirista de longas como ‘Bicho de Sete Cabeças’ (2000), ‘Elis’ (2016), ‘Bingo: O Rei das Manhãs’ (2017) e o esperado ‘Turma da Mônica - Laços: O Filme’ (2019). A série é dividida em 5 episódios de cerca de 25 minutos que abordam, respectivamente, o processo de colonização do país e o massacre do povo indígena; a escravidão e o racismo estrutural; a guerra do Paraguai e o massacre dos nossos vizinhos de fronteira; a revolução de 1930 e os primeiros traços do militarismo no país e, finalmente, o crime organizado do PCC e do Comando Vermelho por todo o Brasil.

Temáticas densas mas extremamente necessárias, principalmente quando vistas na ordem cronológica dos fatos. Isso tudo nos ajuda a compreender - ou pelo menos não esquecer - que nossa história é marcada por muita opressão e derramamento de sangue. As coisas não desandaram a partir de poucas décadas. Não foi por culpa de um partido. O buraco é mais embaixo. As questões raciais são mais complicadas e enraizadas. As lutas são constantes.

É uma série que expõe fatos históricos que diversas vezes, se muito, ganharam dois parágrafos em nossos livros paradidáticos escolares. Cada episódio poderia ser um documentário longa-metragem em si, porém cada minuto é muito bem explorado através de recursos do audiovisual como fotos, arquivos sonoros, filmagens e ilustrações, tudo isso narrado por homens e mulheres historiadoras, antropólogas, jornalistas.

Quase a mesma equipe foi envolvida em outra produção de documentário sociocultural muito semelhante a essa, também dirigida por Bolognesi. A Buriti Filmes, junto com a TV Brasil, lançou em 2010 a série ‘Lutas.doc’, onde trazia quase todas essas temáticas que citei há pouco. Ainda não a assisti (ela está disponível na íntegra no YouTube, também dividida em cinco episódios de 25 minutos), mas numa vista rápida, além da estética que muda nesses 9 anos que separam as séries, os espaços também são abertos para narrativas mais inclusivas. Enquanto a produção de 2010 conta com políticos-celebridades como FHC, Lula, Marina Silva e estudiosos como Leandro Karnal, a produção e direção excelentes de ‘Guerras do Brasil.doc’ ganham ainda mais pontos na narrativa por ela ser contada por especialistas que carregam essas histórias no DNA. Ouvimos acadêmicos e ativistas indígenas falando sobre o massacre do seu povo, assim como ouvimos especialistas negros abordando a escravidão no Brasil.

Tenho minhas críticas também, é bom deixar claro. Deixaram para trás muito, ou quase tudo, da nossa história nordestina, como a Guerra de Canudos e a era do cangaço em Pernambuco e na Paraíba. Senti falta também do buraco deixado entre o episódio de Palmares e da Universidade do Crime, onde não fica claro como a população negra foi deixada ao léu após a abolição e como isso resultou, por exemplo, no surgimento das favelas e no antro das desigualdades. Também é nula a investigação de como se construiu a cultura do estupro no Brasil ou o protagonismo feminino ao longo dos séculos. Mas isso não diminuiu a experiência, me deixou na torcida para próximas temporadas, na verdade.

A série me deixou desesperançosa por me abrir os olhos para uma sucessão de erros históricos, de capítulos de ganância e pura crueldade, fatos que nos fizeram chegar exatamente onde estamos: numa sociedade com muitas violências incrustadas. Seriam suficientes mais 5 séculos de reparações para chegarmos num ambiente minimamente justo? Teria sido diferente se fôssemos colonizados pelos holandeses? Nossa história seria tão oposta assim?

O sentimento de tristeza apareceu ao passo em que senti também uma vontade de mostrar ao país inteiro a nossa história através da série. Talvez fosse um empurrão para uma grande catarse, um despertar coletivo. Que bela ficção, seria.


*coluna publicada originalmente na edição impressa de 19 de junho de 2019