A frase “Isso é tão Black Mirror” entrou para o vocabulário de muita gente desde 2011, quando a antologia de thriller e ficção científica estreou no catálogo da Netflix. Em uma nova e bastante aguardada temporada, a produção original vem com cinco episódios carregados de horror, mas sem necessariamente ser “muito Black Mirror”. A seguir, comento um por um e spoilers medianos vão acabar surgindo.
O primeiro capítulo é um bom fan service para quem acompanha a série desde o início. Em Joan é Péssima somos apresentados ao serviço de streaming Streamberry, numa analogia à própria Netflix. O episódio segue uma progressão narrativa maravilhosa de uma temática bastante próxima a gente, como no capítulo Nosedive, da terceira temporada. Metalinguístico, sarcástico e com um cenário de terror próximo demais da realidade, o episódio traz o questionamento do quanto nós cedemos para empresas na era do compartilhamento de dados. Essa também foi a trama escolhida para divulgar a nova temporada: em uma ação online, você pode criar seu próprio perfil na Streamberry e aparecer no catálogo do site fictício (ou em outdoors por aí). Um detalhe: você precisa assinar os termos e condições para participar da brincadeira. Encararias?
Um assunto recorrente na antologia é o quanto temos uma sociedade carente de validação, seja ela em troca de curtidas ou audiência. O segundo capítulo da sexta temporada traz isso nas entrelinhas enquanto aborda o voyeurismo da contemporaneidade. Na trama de Loch Henry, Davis McCardle e Pia, um jovem casal, faz uma parada numa pequena cidade escocesa antes de prosseguir viagem para filmar um documentário. Enquanto visitam a mãe de Davis na cidade, uma tenebrosa história sobre um serial killer é relembrada e Pia convence seu namorado a mudar de foco, fazendo então um documentário de crime real. Com uma pegada que flerta com o terror found footage (ou seja, filmagens encontradas como em Atividade Paranormal ou A Bruxa de Blair), esse foi um episódio que soube bem trazer a discussão sobre como não é de agora a nossa fixação – por vezes inconsequentes – por assistir e mostrar nossos interesses através das telas.
Beyond The Sea é o episódio mais tenso e pesado da temporada, sem nem aliviozinho cômico. Estrelado por Aaron Paul e Josh Hartnett, o thriller apresenta um passado futurista, quando na era da corrida espacial alcançamos a tecnologia de criar réplicas para cumprir funções. Enquanto seus corpos físicos estão numa missão espacial, dois astronautas usam seus robôs/ciborgues para espairecer na Terra sempre que concluem suas tarefas na espaçonave. O capítulo faz referência aos acontecimentos reais de Sharon Tate e o culto liderado por Charles Manson e coloca o fanatismo religioso indo de encontro à tecnologia. O episódio é um dos melhores, com os protagonistas convincentes em cada aparição e momentos de pura agonia – mas não consigo parar de pensar em como não haveria conflito se simplesmente tivessem enviado a réplica ao espaço e os corpos humanos permanecessem no planeta.
Um dos mais controversos capítulos da temporada foi o quarto, Mazey Day, que aparece em algumas listas dos piores episódios de toda a série. Não entro para esse time por dois motivos: 1) Acho que sim, o culto por celebridades nos anos 2000 e a nociva era dos paparazzi contribuíram para o que de pior temos nas redes sociais, e 2) Eu amo esse tipo de história de terror (que eu não vou falar para não estragar a experiência de quem não assistiu). Ainda que tenha achado o episódio mais fraco da temporada, o ponto que, para muitos, foi o lado negativo da história, para mim foi o mais divertido. Ah, e eu sempre vou pagar pau quando Zazie Beetz aparece na tela.
A temporada acaba com Demon 79 e é aqui que, por mais que eu me esforçasse, não vi o encaixe com as narrativas Black Mirror, tanto no que tange a tecnologia quanto nas comuns reflexões que os episódios propõem. A história em si é divertida e traz o toque excelente do humor britânico, trazendo de quebra referências a Stephen King, então eu penso: Pode não se encaixar com o que o criador da série Charlie Brooker costuma nos oferecer, mas, sinceramente, numa era de tantas produções ruins, não quero reclamar de um episódio legal só porque ele está meio deslocado.
Essa pode não ser uma temporada na qual a nossa relação com as tecnologias seja tão escancarada em todos os episódios, mas assim como defendo que uma banda se aventure por outros gêneros ou estilos em algum momento de sua carreira, vou defender que Charlie Brooker tenha usado esses capítulos como licença poética para explorar novos ares.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 5 de julho de 2023.