A cantora e compositora Fiona Apple tinha apenas 19 anos de idade quando lançou o avassalador Tidal (1996), disco de estreia da jovem norte-americana. Desde então, já se passaram 24 anos de uma carreira montanha-russa, que foi de muitos holofotes para a reclusão midiática, cercada de altos e baixos pessoais e cada vez menos apresentações ao vivo. Fiona Apple é uma pérola, uma artista única e difícil de ser encontrada, mas um alento cada vez que sai de dentro da concha criada por ela própria. Mal foi lançado o novíssimo disco, Fetch the Bolt Cutters, e ambas, crítica especializada e público, já o chamam de álbum do ano.
Oito anos separam a nova obra da anterior, The Idler Wheel (2012), e, neste tempo, é palpável a dedicação de Apple para cada faixa lançada. As 13 canções de Fetch… resultam num compilado do melhor que há na artista: o experimentalismo aparece equilibrado com lirismo e harmonias majestosos, no qual cada composição nos conta uma história. Isto porque, além de musicista de peso, Fiona Apple é considerada uma das melhores letristas de sua geração; suas músicas parecem crônicas, misturam poemas e pontes sem parecerem forçadas.
A cantora foi uma estrela pop na década de 1990 que ia de encontro às divas teen Britney Spears, Christina Aguilera e Jennifer Lopez. Ela escrevia suas próprias músicas, tocava piano e tinha uma maturidade difícil de ser encontrada – parte dela por causa dos traumas e abusos sofridos na infância. Mas isto não fez com que ela conseguisse fugir dos paparazzos, tablóides e sexualização tão populares na época. Sua legitimidade era questionada e muitos diziam nitidamente que aquilo tudo não passava de uma personagem birrenta.
Isto foi, em grande parte, responsável pela reclusão da artista ao longo das décadas. Talvez uma forma de contato direto que ela tenha com seu fiel público seja justamente através de suas músicas, longe de especulações e fofocas. O próprio ato de compor já foi tema de suas músicas, ora como dom, ora como maldição. Para além da construção, com os ouvidos atentos, as músicas de Apple falam talvez muito mais sobre nós mesmos. É a música-paixão por assimilação, entende? Este disco novo parece uma caminhada de todos esses conflitos para finalmente o momento em que ela simplesmente se sente bem consigo e com o legado construído até agora, aos 42 anos de idade.
O novo disco traz uma Fiona upbeat em relação à Apple que apareceu nos dois últimos trabalhos. Temos o humor esquisito e nerd dela à tona, com baladas que valsam fenômenos físicos, divertidas canções que trazem cachorros como backing barking (“latidos de apoio”) nos créditos e mantras positivos (a música-título é um exemplo claro disto).
Sou bastante chegada ao experimentalismo, por isso gostei do disco anterior, no qual a cantora literalmente andava na rua, ouvia sons de máquinas em fábricas e gravava o barulho para transformá-lo em música. Isto ainda está presente no álbum novo, como a percussão desritmada na faixa ‘For Her’, por exemplo. Mas também foi bom ouvir de volta instrumentos como guitarras, violões e violinos.
Fiona, que por muitos anos teve conflito com outras figuras femininas (não se achar delicada suficiente, sentir aflição com a rivalidade imposta pela sociedade e muitas outras temáticas), consegue tratar dessas questões de uma forma diferente desta vez, até como se tivesse sido iluminada e não mais assombrada pelas suas frustrações passadas. Sororidade e empatia feminina estão presentes ao longo das 13 faixas.
Ainda bem que a timidez de Apple não a domina por completo. Vez ou outra, quando eventos como o lançamento de um disco acontece, ela cede entrevistas preciosas e detalhadas para alguns veículos de comunicação. O New Yorker foi um dos grandes premiados da vez e, numa longa entrevista sobre o novo álbum em março deste ano, ela falou sobre relacionamentos passados, a saúde mental instável e a decisão de parar de beber. Esta é a impressão e o sentimento que tenho a cada disco de Fiona: um universo de detalhes, entrelinhas e expressão artística. E após muito tempo presa numa espiral de músicas carregadas e relacionamentos fracassados, a compositora parece emancipada e despretensiosamente feliz. Ou, remetendo ainda ao título do álbum, com o alicate em mãos, Fiona Apple conseguiu achar sua liberdade, enfim.
*publicado orignalmente na edição impressa de 22 de abril de 2020.