por Gi Ismael*
“Punk: diz-se de ou movimento caracterizado pela contestação e desprezo pelos valores sociais, que surgiu na Inglaterra no final da década de 1970, reunindo jovens, por vezes violentos, que adotavam atitude provocativa, por meio de sinais exteriores, como roupas, cabelos, tatuagens etc.”. O desenho já apareceu na sua cabeça: um cara magro, cabelo no estilo moicano ensopado de gel, calças rasgadas, piercings e alfinetes.
O punk surgiu como um grito de uma geração de deslocados, outcasts, ditando um estilo de vida para um público majoritariamente masculino, branco e heterossexual assim como o hip-hop e rap fizeram com jovens negros e/ou periféricos ao redor do mundo. O movimento foi se ramificando e veio então o hardcore, ainda no final dos anos 70, um subgênero mais musicalmente agressivo do estilo. As rodas de poga serviam até de um espaço terapêutico para os incompreendidos, digamos assim.
A definição que citei no comecinho do texto é do dicionário Michaelis e parece muito pragmática -- e até quase irreal -- para definir o que é o movimento punk ou que significa ser punk hoje em dia. Com tantas mudanças sociais nesses quase 50 anos de história do gênero, como viveriam figuras como GG Allin, que se autoflagelava no palco, batia em fãs e estuprava mulheres em seus shows, em pleno 2019? Seria, ainda hoje, romantizado um relacionamento abusivo e problemático como foi o de Sid Vicious (Sex Pistols) e Nancy Spungen, interrompido quando ela foi assassinada com uma facada no abdômen e Sid morto de uma overdose?
Enquanto a gente vive em tempos de fortalecimento do straight-edge e dos anarcho-punks, vertentes que abrigam pessoas veganas, feministas, movimento LGBT, sindicalistas e por aí vai, histórias de misoginia e homofobia insistem em aparecer nesses espaços. Veja que a questão não é qual é a forma correta de fazer punk e sim o que não deve ser jogado para debaixo do tapete quando se trata de um estilo musical de contracultura.
A atitude punk não pode servir de substância, justificativa de atitudes problemáticas e por vezes criminosas. E abro esse espaço aqui para qualquer estilo musical, na verdade: não é aceitável que uma banda de metal insista em cantar (e ainda dedicar às mulheres presentes) uma música que romantiza feminicídio e necrofilia; não dá para procurar contexto quando o guitarrista de uma banda de hardcore da cena local espanca a namorada. Não mais.
Ser machista não é ter “desprezo pelos valores sociais”; ser machista é o valor social na nossa doentia e inversa sociedade. Não há nada de transgressor em chutar quem já está no chão, oprimir os oprimidos. O rock, o punk, o metal, rap, hip-hop, não são e nem nunca vão ser perigosos. Normalizar nesses espaços a falta de saúde mental, suicídio entre homens, violência doméstica, aí sim.
*publicado originalmente na edição impressa de 12 de junho de 2019