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#173 O subjetivo e o quase universal em ‘Aftersun’

publicado: 05/04/2023 09h55, última modificação: 05/04/2023 10h01
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Filme gira em torno de pai solteiro (Paul Mescal) e a sua filha (Frankie Corio) - Foto: Mubi/Divulgação

por Gi Ismael*

Quando você começou a entender seus pais? Aliás, você acha que hoje, na vida adulta, os conhece e os compreende por inteiro?

Premiado em festivais como Cannes, Bafta e Toronto Film Festival, o longa-metragem Aftersun (2022) traz subjetividade no tema universal das relações familiares quando aborda a parceria entre pai e filha, com todos os cuidados e segredos que circulam entre os eles. Venho com dois alertas: este texto, além de ter spoilers, traz temas como luto, depressão e ideação suicida.

Drama feito com muita sensibilidade, Aftersun é a estreia da escocesa Charlotte Wells como diretora de um longa-metragem. A trama acontece em meados dos anos 1990, quando um pai solteiro (Calum, interpretado por Paul Mescal, que foi indicado ao Oscar 2023 de Melhor Ator graças a esse papel), recém-separado, leva sua filha (Sophie, interpretada por Frankie Corio) para passar as férias na Turquia. A narrativa é centrada neles, uma menina de 11 anos de idade e seu jovem pai. Desde o início do filme, é explícito que aqueles são flashbacks de alguém que assiste as fitas da viagem anos depois, portanto é contado sob uma ótica nostálgica e por vezes observadora.

Aftersun apresenta momentos decisivos na vida dos protagonistas: Sophie começa a entrar na puberdade e não mais se sente confortável perto de crianças mais novas, tão pouco completamente entrosada com adolescentes que já consomem bebidas alcóolicas. Ela começa a se interessar por namoros com garotos de sua idade ao mesmo tempo que ainda quer manter tradições já consideradas infantis demais pelo seu pai. Calum, por sua vez, é o pai parceiro e amigo de sua filha, mas paralelamente mascara sua debilitada saúde mental, apresentada por momentos depressivos e de ideação suicida.

Enquanto o longa dá a entender que Sophie já adulta está angustiada com visões de seu pai ainda na década de 1990, temos indicações de que aquela foi a última vez que os dois se viram. Apesar de muito próximos, eles vivem suas particularidades quando se distanciam um do outro. Ela tenta compreender o término dos seus pais e o que é amor, ele tenta lutar contra seus demônios interiores e ser um bom pai.

Não é explícito se Calum tira sua própria vida ou como o faz, mas o filme pincela como ele vivia angustiado e cercado de pensamentos negativos. Isso é mostrado em cenas como a que ele tira o próprio gesso e corta seu braço, ou quando respira com uma toalha molhada cobrindo seu rosto e, de forma mais clara, quando mergulha embriagado no mar.

Ainda que trazendo algumas vivências particulares da diretora, o longa se torna universal (mesmo que não absoluto) em sua dinâmica de pais e filhos, trazendo os segredos e omissões inerentes da vida adulta e a inocência infantil que faz a criança alheia ao mais óbvio ao seu redor. Um recurso muito bonito e inteligente no filme é a narrativa através dos reflexos. Logo de início, percebemos graças ao reflexo no vidro da TV que a filmagem que assistimos está sendo vista por uma mulher. O reflexo no espelho do quarto, por sua vez, mostra expressões e conversas que não estão sendo mostradas na câmera caseira. A piscina reflete a curiosidade de crianças que assistem do teto de vidro, atentas, o que pode ser um primeiro beijo de dois adolescentes.

O contraste de quando Calum está com Sophie aumenta consideravelmente a carga dramática do longa. É ela quem traz as risadas para o pai e divide com ele os momentos mais leves (a dança, o carinho mútuo, a prática do tai chi chuan). Talvez Sophie recorra às filmagens não como um acesso nostálgico de férias inesquecíveis (para o bem), mas sim como uma forma de tentar identificar algo que passou despercebido, algum sinal de que seu pai não estivesse bem. Talvez o tapete turco caro que ele decidiu comprar, a dança em público que compartilhou com a filha ao som de ‘Under Pressure’ ou a fotografia que pagou sem pestanejar, fossem os últimos gestos calculados destinados a Sophie, tal qual o cartão postal que expressa o amor pela filha.

Recomendo Aftersun por ele ser belo em roteiro, direção e cinematografia, por trazer atores que dominam a tela, e, inevitavelmente, por ser um dos mais marcantes filmes do gênero drama coming-of-age que já assisti.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 5 de abril de 2023.