Não me lembro da última vez em que simplesmente deitei, coloquei os fones de ouvido, fechei os olhos e me dediquei exclusivamente a ouvir música. De uns anos para cá, é como se a Música, essa entidade, tivesse tomado unicamente o papel de coadjuvante na minha vida. Parece que me tornei uma pessoa impossibilitada de cumprir apenas uma tarefa por vez.
Não é que a Música tenha me deixado. Não é Ela, sou eu. Ela sempre está ali, enquanto dirijo, enquanto trabalho, enquanto jogo. Mas Ela merece mais. Um ritual como o do bilhetinho deixado para William Miller em Quase Famosos, há 20 anos: “ouça o ‘Tomy’ com uma vela acesa e verás todo o seu futuro”.
Hoje foi um daqueles dias de colocar uma playlist inspiradora, instigante. Nos fones, Alanis Morissette, Garbage, Blondie... uma coisa puxa a outra e lembro da maravilhosa 'My Favourite Game', de The Cardigans. Apesar de ser uma canção bem conhecida e uma que ouvi incansáveis vezes no Disk MTV (clipe pé na estrada divertidíssimo), acredito que essa foi a primeira vez em que ouvi a faixa com meus fones de ouvido. Enxerguei um colorido na música que me lembrou a cena de Anton Ego, o crítico de Ratatouille (2007), experimentando o prato final, sabe? Uma experiência sinestésica, quase. Trip hop e rock'n roll, cama feita com o baixo metálico e encorpado, percussão instigada, sintetizadores, guitarras. Um som sujo, mas não poluído. Um quê de Nine Inch Nails que nunca percebi. F*da. A música sempre foi a mesma. O que mudou foi como eu a ouvi.
Depois de anos e anos ouvindo The Beatles por tabela enquanto meu pai estourava as caixas de som do carro e da casa, o primeiro CD que fiz audição, só eu e os fones, foi o Abbey Road. Intrigada e encantada, cada vez que 'Her Majesty' acabava e 'Come Together' voltava, eu percebia um elemento diferente. Logo depois, surrupiei um presente que papai ganhou de um amigo: um CD-ROM que continha um software com 26 discos dos Beatles. Música por música, acessava as letras e informações diversas da discografia e sem precisar da Internet (ou seja, tipo um Spotify, só que melhor). Eu era a própria Jasmine cantando "um mundo ideal, é um privilégio ver daqui!". Ali, éramos eu, os quatro fantásticos e os fones. E quando eu chorei ouvindo pela primeira vez o A Night at the Opera, do Queen, com o headphone nas alturas?
Quando abandonei esse foco e a total dedicação? Provavelmente na mesma época a qual nós não tínhamos mais encartes em mãos, aprendendo faixa a faixa num karaokê mental. É incrível ter acesso a bilhões de faixas em poucos cliques, gratuitamente ou a um preço bem acessível. Não precisa nem mesmo escolher a dedo o que ouvir, os serviços de streaming montam exatamente aquilo que você quer ouvir baseado no seu gosto. Perdeu alguma novidade? Toma! Quer ouvir coisas novas? Toma! Quer ouvir de novo? Aqui, abre a boquinha.
Isso tem seu ônus e bônus. E um dos ônus, para mim, é a falta de dedicação exclusiva. “All you got to do is try a little tenderness”. Não me deixar levar pelas distrações do celular, bloquear a tela e deixar ali ao lado. Agradeço aos gentis posts na Internet que clamam: ouça esse videoclipe com headphones. Sim, senhor, e obrigada.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 28 de abril de 2021.