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#53 Passa, tempo, tic-tac

publicado: 17/06/2020 10h22, última modificação: 03/11/2020 11h25
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Em tempos de isolamento social, obra ‘A Persistência da Memória’, de Salvador Dalí, pode trazer novas reflexões sobre o tema

tags: quanto tempo o tempo tem , gi ismael

Aqui estamos nós vivendo uma nova era ac/dc: “antes do coronavírus” e “depois do coronavírus”. Agora nos encontramos bem no meio dessa régua. Temos ainda devastadoras e crescentes mortes por conta da covid-19, continuamos em reclusão social (assim espero), distanciamento e, principalmente, em algo que parece uma eterna fase de adaptação. Isso aconteceu em um ponto da humanidade em que parar por uns dias é sonho e ser parado por uma ordem vira quase penitência. Para muitas pessoas, a própria noção do “tempo” foi alterada.

O documentário Quanto Tempo o Tempo Tem? (2015), de Adriana Dutra e Walter Carvalho, disponível na Netflix, traz reflexões filosóficas e fatos científicos para discutir o tempo e como ele foi moldado para a nossa vida contemporânea, quando “vivemos num estado de completa incompletude”, como diz físico Luiz Alberto Oliveira. Diga-se de passagem: não tive tempo de assistir de uma vez só um filme de 1h15 de duração, então o fragmentei em duas partes, pausando vez ou outra para responder a uma mensagem no meu celular. Bem, se tempo não valesse dinheiro, nossos contratos não seriam baseados em horas semanais.

Assistir ao filme em plena quarentena foi uma experiência e tanto, já que além das mudanças tecnológicas que aconteceram nos últimos cinco anos, o contexto dele poderia ser um tanto diferente se a discussão estivesse sendo feita agora. Meu tempo foi deturpado. Contabilizo mais de três meses em isolamento social e sinto como se só 30 dias tivessem passado. Na prática, eu me dei conta de que, ao contrário do que imaginava, dias iguais passam mais rápido. Um trimestre parecia uma eternidade. Tudo poderia mudar em três meses e a imprevisibilidade do cotidiano prolongava as horas.

De que adianta determos todo o tempo do mundo se nosso espaço físico limitou-se a alguns metros quadrados? De que adianta ter o mundo para desbravar e faltar tempo para bater perna? Mais do que nunca valorizo a soma tempo + espaço.

Pensar no presente tornou-se quase uma obrigação uma vez que vislumbrar o futuro potencializa as ansiedades. O que fazer com tanto tempo livre quando se excluem possibilidades de distrações do mundo fora-casa e as atividades se limitam ao que temos em nosso alcance? O primeiro mês foi o lema “não parar para não pirar”. Projetos mil, aulas EAD, cursos de línguas e instrumentos, arrumar (de verdade) a casa. Tirar a furadeira da caixa, pendurar uns quadros ou uma rede. Até que me desgastei com a informação em excesso. Cansei das opiniões em larga escala, das milhões de possibilidades que podemos encaixar no tempo porque o capitalismo nos ensinou que todo tempo livre precisa ser produtivo – isso tudo para que, enfim, apenas aposentados, possamos usufruir do descanso das décadas de trabalho duro.

O momento DC está mais perto do que longe? Até lá, que responsabilidade grande é deter o tempo em nossas mãos. O tic-tac virou tic-tic-tic e ‘O relógio’, de Vinícius de Morais, agora somos eu e você.

Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Tic-tac...

*publicado originalmente na edição impressa de 17 de junho de 2020