Muita dedicação e um conhecimento quase empírico são necessários para catar todas as meta-referências que cada produção do Marvel Cinematic Universe (MCU) tem a nos oferecer. Não é para menos: nesses mais de 80 anos da editora Marvel, a estimativa é que 37 mil HQs, de acordo com um levantamento do RetroGeek, estreladas por sete mil personagens, já foram publicadas. É pano para muita manga e, por manga, quero dizer filmes e séries, obviamente. Com o Disney+ a todo vapor, as narrativas da nova geração dão seu pontapé inicial e o fio começa a se desenrolar com WandaVision, série protagonizada pelas crias de Stan Lee, Jack Kirby, Roy Thomas e John Buscema. Pega a "wandavisão" (desculpa):
A série começa com os heróis Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) e Visão (Paul Bettany) desfrutando a vida de casados no subúrbio de Westville, Nova Jérsei, com estilo de vida totalmente adepto ao "american way of life" dos anos 1950. Tudo no episódio remete à década: desde a proporção de tela em 4:3 e imagem em escala de cinza, aos figurinos, trilha sonora e às piadas com leves doses de acidez nos moldes da fantástica I Love Lucy (1951 - 1957). Sem que precise ser dito, é perceptível que cada episódio da série é baseado numa década diferente, ainda que a ordem cronológica da narrativa continue no presente. Diferente do que possa parecer, WandaVision não é um apenas um programa que celebra as sitcoms norte-americanas ao longo dos anos e, por acaso, é protagonizado por personagens da Marvel. A cada episódio, um pequeno mistério, nuances nos diálogos e até glitches nos dão dicas de que algo muito maior está acontecendo.
Estou tentando não dar muitos spoilers sobre a série, mas para explicar o contexto e dar minha opinião, alguns são inevitáveis. A minissérie é datada logo após os acontecimentos de Os Vingadores: Ultimato, onde o grupo de super-heróis junta seus esforços para reverter a ação genocida de Thanos e "desblipar" metade da população mundial. Um dos grandes impactos do filme foi a morte de Visão, o carismático sintozóide (um humanoide criado em laboratório, composto de sangue e órgãos sintéticos) e par romântico de Wanda, a futura Feiticeira Escarlate. Mas como ele aparece agora se morreu - morreu mesmo, não "desparareceu" - com o estalar de dedos do vilão? A resposta é dada pelo próprio Visão no último episódio, quando consola Wanda após ela perder seu irmão gêmeo, Pietro Maximoff, o Mercúrio: "o que é o luto senão o amor que perdura?".
Diversas produções atuais tem o problema de apostarem no ritmo mais arrastado, mas talvez por ter escolhido lançar episódios semanais de WandaVision, a Disney soube dosar o bem o passo da narrativa. O conflito nos é apresentado no terceiro ou quarto episódio, quando compreendemos que o casal está vivendo dentro de uma sitcom chamada, sim, 'WandaVision', com personagens e roteiros pré-estabelecidos. Mas o drama não poderia ser tão simples, por isso outros conflitos aparecem nesse meio: o quem, quando, como, onde e por quê são todos respondidos em apenas nove episódios de 30 minutos. É louvável como conseguiram manter o foco em tão pouco tempo de tela. Parece que aprenderam com a dura lição que o fracasso Vingadores: Era de Ultron (2015) os trouxe.
Isso tudo fazendo ainda uma ode às sitcons, e uma garota como eu, que cresceu acompanhando até as que não eram da minha década, ficou nas nuvens reconhecendo ali as referências a I Love Lucy, A Feiticeira (1964 - 1972), Jeannie é um Gênio (1965 - 1970), Três é Demais (1987 - 1995), Malcom in The Middle (2000 - 2006), The Office (2005 - 2013) e Modern Family (2009 - 2020). Só amor!
Quando terminei de assistir a série, me recordei da sátira que The Boys (2019 - ) faz ao "girl power" hollywoodiano, aquele que monta nas pautas sociais para lucrar em cima disso. Isso foi bem forte em Vingadores - Guerra Civil (2018) e eu simplesmente adorei. E WandaVision poderia ter surfado nessa mesma onda, mas acabou indo além. A série tem 80% do arco central de personagens formado por mulheres e, mesmo assim, não precisou usar isso como artifício na narrativa. A história foi feita para, e transmitiu muito bem a mensagem, apresentar um momento de crise de uma das personagens mais fortes do MCU. Uma história que reflete sobre o amor, sobre perdas, sobre luto. Com questionamentos filosóficos afiados, WandaVision é sobre o que nós escolhemos como realidade e o que, de fato apenas, é. E não precisa de nenhum conhecimento pré-Marvel para compreender isso.
As duas cenas pós créditos deixam um gancho para o que vem a seguir: a Feiticeira Escarlate enquanto personagem do futuro Doutor Estranho 2: Multiuniverso da Loucura (tradução livre) e Monica Rambeau reencontrando Carol Danvers em Capitã Marvel 2. Mas ainda tem muito mais para acompanhar e, se você assim como eu tem o conhecimento que limita-se aos filmes do MCU, recomendo começar a se atualizar nos canais especializados no YouTube. Explicações e conexões não faltam! Até lá, vale rever alguns dos filmes e recriar aquela realidade distante onde assistíamos a todos eles nas salas de cinema.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 10 de março de 2021.