Notícias

#71 Poesia submersa

publicado: 04/11/2020 00h02, última modificação: 03/11/2020 11h25
My-Octopus-Teacher.jpg

- Foto: Divulgação/Netflix

tags: professor polvo , documentário , NETFLIX , gi ismael , Gi com tônica

 

Carma, divindade, energia, coincidência ou acaso: chame como quiser ou creia no que acreditar, faz parte da experiência humana o aprendizado. Tiramos lições através da vida profissional, dos nossos estudos e relacionamentos e, vez ou outra, nos deparamos com surpresas, aqueles ensinamentos que surgem do lugar de onde menos esperávamos. Para o mergulhador amador Craig Foster, o fundo do mar fez papel de sala de aula para sua maior lição vivida até então. O tutor? Um polvo fêmea. 

Até chegar no oceano, o sul africano Craig Foster era explorador da terra. Cineasta desde os 20 e poucos anos de idade, Foster trabalhou por duas décadas documentando a vida selvagem em seu país, captando momentos raros para nós e rotineiros na vida selvagem. Entretanto, o nascimento de seu filho e a exaustão da vida de filmmaker fez com que Craig, aos 45 anos de idade, se aposentasse da ilha de edição e das longas viagens para, enfim, ficar em casa. É logo ali em frente ao lar, sob geladas ondas de temperaturas que oscilam entre 6ºC e 8ºC, que ele decide explorar o oceano através do mergulho livre, isto é, sem roupas térmicas e tanques de oxigênio, por um ano ininterrupto, documentando tudo com uma câmera de mão própria para o fundo do mar. A partir daí surge o documentário Professor Polvo, uma produção original Netflix dirigida, editada e roteirizada por Pippa Ehrlich e James Reed.

As visitas diárias a um ponto específico do mar fez com que Craig avistasse uma estranha figura em formato de bola e envolta de conchas que, pouco depois, mostrou-se ser um polvo. Encantado com o que viu, paulatinamente Foster tenta aproximação e confiança com a criatura, desenvolvendo uma obsessão sadia, repleta de aprendizados sobre o ciclo da vida, desapego e coexistência humana na Terra. 

Apesar de adorar a cantoria de Ringo Starr em 'Octopus’s Garden', culpo as leituras de H.P. Lovecraft por me sentir aflita diante de polvos e achá-los grotescos, monstruosos como Cthulhu foi idealizado. Aí veio a danada da lição de vida para me falar: ei, garota, olhando bem, na natureza a beleza e poesia em tudo tem. Mesmo com apenas 1h25 de duração, Professor Polvo é um dos documentários mais sensíveis e poéticos que já assisti e, tenho certeza, muitos de vocês também. Com apenas a voz-off de Craig Foster narrando com paixão os acontecimentos diários, absorvemos todo o sentimento de empatia, preocupação e amizade sentido pelo humano-coadjuvante em relação ao molusco-protagonista enquanto são colocados em cheque nossos conhecimentos superficiais e emotivamente distantes para com criaturas não domesticadas. Toda a narrativa é abraçada pela magnífica trilha sonora original de Kevin Smuts e a atmosfera submersa colorida pelo desenho de som feito por uma equipe de seis profissionais. Da edição à cinematografia, o filme tem tudo para levar as maiores premiações da categoria e varrer festivais ao redor do mundo. 

Não que antes fosse distante de mim o cuidado com a natureza, mas sinto que Professor Polvo foi um lembrete para o fato que vivemos num planeta incrível. Enquanto afundados num modelo capitalista onde bancadas da motosserra e bilionários agropecuaristas destróem o solo, temos o fundo do oceano como pièce de résistance. Corais, peixes, moluscos e criaturas mil escondidas a quilômetros de profundidade existindo como devem existir. Professor Polvo é um lembrete de que nós não somos visitantes deste lugar, somos co habitantes. Quero viver em simbiose do bem. Aos ares com Lovecraft!: I'd like to be under the sea in an octopus' garden in the shade”.

*coluna publicada originalmente na edição impressa de 04 de novembro de 2020.