“Escória/Escória/Nem f** vocês vão conseguir entrar pra história/Vou lhes dizer o que é política/o vagão de lixo passa e o trem da histórica fica/Vou lhes dizer o que é arte e cultura/não vai crescer nem capim sobre vossa sepultura”. Se eu lhe disser que isto é um trecho de uma canção, qual gênero musical você atribuiria aos versos? Alguma variação de punk, talvez? Poderia ser, mas não, não. Essa é a música-título de um novo EP de Zeca Baleiro, um álbum composto por quatro... marchinhas carnavalescas.
O disco saiu nas plataformas há poucos dias com o intuito de lançar o Baile do Baleiro de Carnaval, festa que acontece amanhã na Casa Natura Musical, em São Paulo, e fazer as pessoas cantarem a plenos pulmões durante a folia, como o próprio cantor escreveu em sua conta pessoal no Instagram. Além de ‘Escória’, o EP conta com as músicas ‘Bichos Escrotos II’, ‘Você Não Quer Dividir o Avião’ e ‘Babaca Mané’. Pelos títulos, dá para ter uma ideia que Baleiro não alivia durante os poucos mais de dez minutos de músicas e o cenário só melhora quando você, de fato, ouve faixa por faixa. Ele não poupa os xingamentos e faz um disco engajado, sem perder a língua afiada que exigem as marchinhas carnavalescas.
Fazer com que o palavrões e ofensas explícitas não torne algo menos inteligente é um desafio e Zeca Baleiro tirou de letra. Em uma crítica feita para o G1, o jornalista Mauro Ferreira disse que o tom do maranhense chega a ser crítico e pesado demais para o clima de ‘zoação’ do carnaval. Discordo e digo mais: às vezes, o que falta é um tom mais ríspido e engajado, até mesmo no mês de fevereiro. As músicas não são chatas e divertem enquanto fazem você esboçar um sorriso e arquear a sobrancelha, embasbacado e entretido.
Recentemente, o colunista Anderson França, da Folha de São Paulo, criticou a omissão de muitos artistas da indústria brasileira do entretenimento em massa quanto o assunto é política, falando especificamente sobre o episódio em que o Roberto Alvim, ex-Secretário de Cultura, usou referências nazistas num discurso em vídeo. Citou ainda pessoas que foram na contramão do silêncio: Zélia Duncan, Marcelo D2, Tico Santa Cruz. Concordo com ele e fico feliz em saber que, nessa lista dos não-conformistas, entra Zeca Baleiro, um dos poucos artistas capazes de alcançar enormes públicos dos mais diferentes gostos musicais.
Alguns outros músicos têm ido por esse lado crítico, como o grupo Francisco El Hombre, que lançou em 2016 o single ‘Bolso Nada’, ou ainda a banda paraibana As Gatunas, com ‘Ode ao Bozo’. As duas músicas, claro, fazem ataques e gritos de resistência contra o presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro. Na última faixa do EP de Baleiro, a ‘Babaca Mané’, o compositor abre alas para a canção com os versos “respeita Fernanda Montenegro, babaca/ tu saiu de que cloaca?”. Quantos mais com a projeção dele teriam essa coragem documentada, referindo-se ao episódio onde Roberto Alvim atacou a lendária atriz, dizendo, entre outras coisas, sentir desprezo por ela?
Com ‘Escória’, Zeca Baleiro, que já está escalado para diversas folias de rua, demonstra que não é alheio e nem alienado quando se trata do atual cenário social e político do nosso país. E ele luta com a melhor arma que tem: sua arte e seu alcance. Pode ser que o EP tenha um tom, por vezes, raivoso, mas diferente dos “cães bolorentos [que] só sabem insultar porque não tem argumentos”, como canta em ‘Babaca Mané’, o cantor tem provas e não apenas convicções. E, se o tom do EP foi sério demais ou não para a festa de Momo, o Carnaval, assim como o show, continua.
*publicado originalmente na edição impressa de 05 de fevereiro de 2020.