Lá por volta dos meus 16, 17 anos de idade, comecei a ouvir Os Mutantes. Escutava inúmeras vezes, de trás para frente, a discografia da banda sessentista. Por eu ser uma garota anos 1990, quando descobri os Mutas nos anos 2000, já fazia um bom tempo que a banda deixara de ser o trio de bruxos para se tornar um grupo sem mágica com a ausência da figura mítica que é Rita Lee e o loki do Arnaldo Batista.
Antes de conhecer a banda, assim como muita gente, ouvia Rita Lee desde pequena nas festas de família, nas rádios, nas novelas, nos especiais de televisão e karaokês. Ligar os pontos e descobrir que aquela mulher roqueira, dona de músicas divertidas e dos cabelos vermelhos era a mesma hippie que levava alegria e estilo aos Mutantes foi um cafuné na minha alma. Passei muitos anos admirando a rockstar que é Rita, desde o talento à personalidade, o bom humor, as incríveis entrevistas e a aura única que ela tem. Mas foi só agora, depois de Ritinha alcançar os 72 anos de idade, que vejo minha admiração crescer exponencialmente.
Li recentemente o livro Rita Lee: Uma autobiografia (Editora Globo, 2016) e grito aos sete ventos – escrevendo também no jornal impresso – o quanto eu recomendo a leitura. Com a sinceridade característica, Rita conta cronologicamente fatos ora relevantes, ora curiosos, ora simplesmente divertidos, de sua vida desde a infância (ela tem uma memória invejável) até os meados dos anos 2010, quando foi publicado.
Fiz uma viagem ao tempo e me senti nos bastidores da Tropicália. Me vi na plateia assistindo ela e João Gilberto num dueto marcante. Íntima de Elis, de Gilberto Gil, e eu ali, observando as aventuras como um ser onipresente. Senti a dor a cada pessoa querida que morria ao longo das décadas e o amor a cada bichinho de estimação que se chegava no lar. A frustrante batalha contra o vício (e as experiências legais também). Justamente por ser de outra geração, não acompanhei esses fatos quando aconteceram, mas conhecer mais a fundo Rita Lee pós-anos 2010 tem a vantagem de ser uma experiência ainda melhor já que contamos hoje com múltiplas mídias de apoio. Com o kindle encostado na barriga, saí pesquisando no smartphone cada registro que fosse possível nos Youtubes, Googles e Spotifys da vida.
Compreendi o que estava nas entrelinhas da admiração praticamente unânime por Rita (aparentemente, desde sempre renegada pelos críticos musicais do Sudeste). Além de se impor e resistir a um ambiente dominado por homens, fez o que bem entendeu ao longo dos anos, cantou o que quis e, quando censurada ou presa pela ditadura, cantava ainda mais forte quando retornava. A irreverência e o talento são apenas partes do quebra-cabeça Lita Ree (amo esse apelido).
Rita não é nem um pouco modesta quando fala, com razão, de tudo que conquistou, inventou e reinventou na música feita no Brasil. Colocou a mulher como sujeito do sexo e não mais o objeto, tocou rock quando esperavam MPB e bossa nova quando pediam por algo psicodélico. É a cantora que mais vendeu discos no Brasil, arrastou multidões, foi protagonista quando esperavam dela o anonimato. Teve programa de rádio, de TV, escreveu livros infantis. É interessante que, dentre tantas coisas que poderiam talvez provocar um pé atrás, é justamente com a própria voz que Rita Lee mostra insegurança ao longo de toda a autobiografia. Vai entender...
Numa entrevista recente ao Fantástico, exibida em 31 de maio de 2020, Rita fala sobre algo que aparece já no fim do livro: a velhice e como ela encara a nova fase da vida. Aliás, “encarar” pode parecer negativo, vou reformular: como ela abraça a terceira idade. Vivendo reclusa há oito anos ao lado do marido Roberto de Carvalho, Rita, já avó, conta que já teve “cabelos loiros e ruivos da cor sol, hoje eles são platinados que nem a lua”. Aceitando cada ruga e cada cicatriz, ela agradece por toda a jornada até hoje e diz que, apesar de estar longe dos palcos, a música cohabita dentro de casa fazendo harmonia e melodia com o amor incondicional dos dois.
Na música ‘Saúde’ ela canta: “Mas enquanto estou viva e cheia de graça / Talvez ainda faça um monte de gente feliz”. Pensamos igual, Ritinha. Você faz, sim, uma penca de gente feliz e posso dizer que agora tento pensar assim de mim também.
*publicado originalmente na edição impressa de 24 de junho de 2020.