por Gi Ismael*
“Não se entreguem a esses homens artificiais. Homens-máquinas, com mente e coração de máquina. Vocês não são máquinas, vocês não são gados. Vocês são homens!”. Em 1940, Charles Chaplin estrelava seu primeiro filme falado. As aspas citadas são um trecho do discurso final de O Grande Ditador, indiscutivelmente um dos mais belos e marcantes monólogos da história do cinema. Mais de 80 anos depois, ouvimos cada palavra do texto como se Chaplin fosse quem estivesse nos assistindo em tempo real.
Quando bem escritos e entregues, os discursos fictícios são tão memoráveis e impactantes quanto os da “vida real”. Os filmes são panoramas importantes para entendermos como, por exemplo, era o confuso e dicotômico o funcionamento da política na época, como a sociedade se posicionava e se comportava. Eles são termômetros, muitas vezes, universais.
Uma emblemática cena do filme Rede de Intrigas (1976), de Sidney Lumet, é uma dessas na qual o conteúdo das palavras atravessa décadas. Diante das câmeras, o âncora Howard Beale (Peter Finch) tem um surto ao vivo e, como quem solta um grito abafado, ele clama à audiência “você precisa se enlouquecer!”. Do começo lento, com palavras ainda contidas, à crescente em que telespectadores, debruçados sobre as janelas de suas casas, ao som de trovões, gritam “eu estou louco e não vou me submeter”, a cena é apoteótica. Marcante.
E quando os discursos que percorrem o meio político vêm com um tempero do sarcasmo, o resultado pode ser tudo que a gente não sabia que precisava. Sacha Baron Cohen é um mestre contemporâneo do assunto. No filme O Ditador (2012), após o General Aladeen (Cohen) declarar que o fictício país de Wadiya continuaria uma ditadura, os estadunidenses ficam estarrecidos. “Ah, calem a boca!”, diz o personagem. “Por que vocês são tão anti-ditadores? Imaginem se a América fosse uma ditadura, vocês poderiam deixar 1% da população ter toda a riqueza do país! Poderiam deixar seus amigos ricos ficarem cada vez mais ricos diminuindo seus impostos(...), vocês poderiam ignorar a necessidade dos pobres por saúde e educação. Os meios de comunicação pareceriam livres, mas secretamente seriam controlados por uma só pessoa e sua família…” Genial.
Mas nem sempre os discursos marcantes são aqueles proferidos pelos mocinhos. Enquanto os filmes precisam, geralmente, construir e fechar sua narrativa em duas horas, as séries têm mais tempo para mastigar o roteiro. The Boys, série da Amazon Prime Video baseada nos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson, explora bastante o púlpito para o bem ou para o mal. É na terceira temporada em que o Capitão Pátria (Antony Starr), um dos mais detestáveis personagens da ficção contemporânea, publiciza seu verdadeiro ser. O facista, o inconsequente, o ególatra. No final do segundo episódio da terceira temporada, o discurso veio sem ensaio ou roteiro. Ao ouvir que sua namorada nazista havia morrido, o Capitão Pátria arranca de vez fachada de bom-moço. E sua popularidade cresce. O clichê “a vida imita a arte” às vezes ri bem na nossa cara, né?
No meio da multidão, o homem comete um ato horrendo – dentre os seus inúmeros, este foi o primeiro a ser testemunhado por milhares. Ele ataca, é violento contra os próprios que sempre defendeu. Com esta postura que parece completamente indefensável, tudo estava em jogo até mesmo para quem esteve do lado da campanha do ódio. Mas basta um aplauso e um grito de apoio para que aquele, de repente, fosse o novo comportamento geral. Por mais que eu deteste o Capitão Pátria, eu até gostaria de estar falando sobre o cenário fictício de The Boys.
A ficção pode ser um termômetro e, mais uma vez, a vida imita a arte.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 26 de outubro de 2022.