Nos Estados Unidos na década de 1960 -- e em boa parte do mundo --, homossexualidade era tabu; além de considerada pela sociedade conservadora da época uma doença e uma forma de aberração, ser gay era literalmente crime e, por exeplo, homens eram proibidos de dançar juntos. Foi vivendo nesse cenário que, em 1968, o jovem dramaturgo Mart Crowley escreveu a peça The Boys in the Band, uma produção lançada no circuito alternativo da Broadway. O espetáculo tornou-se alvo de boicotes e polêmicas diversas, mas não foi isso que o definiu: ele foi o primeiro da história a levar para os palcos personagens gays retratados de forma cotidiana e rotineira, baseados no próprio autor e em seu ciclo de amigos. Com ele, começava uma revolução na indústria cultural que andou de mãos dadas com a Rebelião de StoneWall em 1969, um marco na luta dos direitos LGBT nos Estados Unidos e no mundo.
Em 2018, Mart Crowley, com 82 anos de idade, fez parte de um comeback em homenagem aos 50 anos do espetáculo para a Broadway. Agora, em 2020, voltou como roteirista para a adaptação cinematográfica da icônica peça trazendo alguns dos atores do espetáculo mais recente. The Boys in the Band, o filme original Netflix, entrou em catálogo no último dia 30 de setembro, junto com um minidocumentário sobre bastidores, e apresenta a mesma trama do espetáculo, ambientada em 1968: um grupo de nove amigos, todos homossexuais, se reúne num apartamento para celebrar o aniversário de Harold, que acaba de completar 32 anos. São nove amigos totalmente distintos, seja nas suas autopercepções, formas de se expressar ou profissões. Entre bebidas e conversas sobre relacionamentos, o filme explora de maneira crua o contexto difícil e doloroso enfrentado pela comunidade LGBT nos anos 1960. No elenco, estão atores de Hollywood abertamente gays: Jim Parsons, Zachary Quinto, Matt Bomer, Andrew Rannells, Charlie Carver, Robin de Jesus, Brian Hutchison, Michael Benjamin Washington e Tuc Watkins.
O longa é feito para para deixar o público confortável até certo ponto. Conversas dinâmicas e engraçadas entre os amigos, câmeras close-up e luzes e cores quentes no ambiente passam a sensação de que nós, a audiência, somos mais um no grupo de amigos. Estamos presentes nas conversas ácidas e observamos o caminhar pela linha que só realmente os amigos mais íntimos podem cruzar: o terreno onde moram todas as verdades intrínsecas de cada um. Ao apresentar diferentes tipos de tensões existentes entre as quatro paredes do apartamento (tensões sexuais, de raça e amorosas, por exemplo), The Boys in The Band constrói aos poucos a atmosfera até ela tornar-se a sufocante realidade vivida pela comunidade LGBT da época, ao passo que, numa triste ironia, fazemos assimilações diretas com o contexto atual da sociedade meio século depois.
O filme é uma ode a uma geração que fez história na corrida pela liberdade de gênero enquanto escancara o poder destrutivo do ódio -- pelos outros e por si. O dramaturgo Mart Crowley morreu no último março aos 84 anos de idade, mas não sem antes deixar mais essa tocante e sensível herança para nossa geração e as futuras, revisitando batalhas e conquistas, sublinhando a importância da luta por direitos humanos.