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#73 'The Forty-year-old Version': joia rara da Netflix

publicado: 18/11/2020 09h24, última modificação: 18/11/2020 09h33
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No filme, uma dramaturga decadente nova-iorquina recém-chegada aos 40 anos busca se reinventar investindo em uma carreira de rapper - Foto: Divulgação/Netflix

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Se João Pessoa (pré-pandemia) fosse personagem de um filme, até imagino uma representação legal: o movimentado comércio do centro da cidade com uma pitada de velhinhos sentados no Ponto de Cem Réis; a orla em alternados takes entre jogadores de altinha, ambulantes e uma família de cinco tomando banho de sol; na Zona Sul, a Batalha do Coqueiral, na Zona Norte, as pistas de skate de Manaíra. E calor. Muito calor.

Filmes como "Encontros e Desencontros" (2003) e "Uma Noite Sobre a Terra" (1991) trazem cidades tais quais Tóquio, Helsinki e Londres não apenas como cenários, mas enquanto coadjuvantes e até sujeitos nas tramas. A querida e dicotômica Nova York respira no recém-lançado "The Forty-year-old Version", filme da Netflix, e esse é apenas um dos motivos pelos quais o filme acaba de entrar na lista de um dos meus preferidos de toda a vida. 

A personagem homônima de Radha Blank, escritora americana que também assina o roteiro e direção do longa, é uma dramaturga nova-iorquina recém chegada aos 40 anos de idade. Professora de teatro numa escola pública, seu último grande sucesso teatral esteve em cartaz há dez anos. Numa busca por reinvenção, ela decide investir na carreira de rapper.

O filme é uma refinadíssima comédia que aborda o fazer artístico, papéis sociais, raça, gentrificação, gênero e sexualidade sob a perspectiva de Radha. O roteiro é tão envolvente e as atuações tão legítimas que os 120 minutos de duração passam voando. É o tipo de filme que merecia ser série. Esteticamente agradabilíssimo também: todo filmado em 35mm e em preto e branco, ele relembra fotografias de rua e clipes de hip hop dos anos 90, enquanto inesperadamente joga uma corzinha para gente. 

Este terreno de narrativas do cotidiano é bem familiar para a roteirista. Ela produziu e dirigiu episódios da série "Ela Quer Tudo", de Spike Lee, grande influência em seu trabalho, e "The Get Down", ambas da Netflix, até que decidiu fazer sua própria obra que mistura ficção e biografia.

Filha de Carol Blank, artista plástica, e de Roger Blank, um baterista de Jazz, Radha optou por um filme que fosse também uma ode à sua família e artistas pretos da cidade de NY. De forma apaixonante e nada romantizada, acompanhamos a jornada de Radha por rejeições e descobertas, do humor autodepreciativo ao amor-próprio. Estamos falando aqui da talentosa dramaturga, há uma década na geladeira, vs. a promissora RadhaMUSprime, um alter-ego rapper que cria rimas sobre dor nas pernas e tesão de uma mulher na casa dos 40. Realidade e ficção se misturam na narrativa e não importa bem o que é verdade ou não na vida de Blank: a vontade que dá é de acompanhar até os dias mais maçantes na vida da artista. 

Estou tentando não falar muito sobre a história em si porque realmente acredito valer a pena você passar por essa experiência tateando o terreno tim-tim por tim-tim. Gosto de pensar em "The Forty-year-old Version" como um filme coming of age. Mas a idade em questão não é a adolescência, como normalmente vemos nesse gênero, e sim os 40! Com tantas camadas e reflexões a oferecer, se apropriando de uma linguagem leve e artística, o longa é uma obra essencial para assistir em 2020 -- e carregar no peito para o resto da vida. 

*coluna publicada originalmente na edição impressa de 18 de novembro de 2020.