Cheguei quase no fim da minha meta de 50 filmes inéditos no ano (mas não necessariamente lançados em 2019). Foi um período bem eclético pra mim e que trouxe títulos que estão, agora, num patamar acima da média na minha régua de métrica incerta. Apesar da variedade de estilos, meus preferidos são assumidamente filmes de terror e/ou suspense ou ainda produções que permeiam pelos estilos de alguma forma. Nós (Jordan Peele, 2019) e Hereditário (Ari Aster, 2018) estão lá entre os quatro assistidos em 2019 que subiram vários degraus e alçaram, para mim, o status de “clássico”, ao lado de Bacurau (Kléber Mendonça Filho, 2019) e Coringa (Todd Philips, 2019).
Me dar conta disso fez com que eu voltasse para pensar em todos os filmes assustadores que amo e, no topo da lista, estão O Exorcista (William Friedkin, 1974) e A Morte do Demônio (Sam Raimi, 1981). Eles são clássicos que redefiniram gêneros, mudaram o jogo. O filme de William Friedkin é baseado no livro de mesmo nome, lançado em 1971, e de autoria do xará William Peter Blatty. Além de explorar o terror tanto no silêncio quanto na sonoplastia crua e grotesca, O Exorcista deu a carta branca para a exploração do gore e fez com que todo mundo tremesse nas bases com a possibilidade de ter o corpo tomado por um demônio que faz umas coisas não muito católicas com um crucifixo. O cinema de horror não seria o mesmo hoje em dia se não fosse por O Exorcista. E ele entra nessa lista porque até hoje me faz perder fácil uma noite de sono.
Já A Morte do Demônio criou o clichê dos jovens sensuais e transantes que vão para uma cabana abandonada e bendizer comem o pão que o diabo amassou -- ou são comidos, sei lá. O kitsch dos anos 80 manifestado em frases de efeito e alívios cômicos se junta a possessões medonhas e mostram que é possível sim juntar a comédia ao terror sem se transformar num filme risível e propositalmente “B” e trash. Não tenho dúvidas que longas satíricos como Zumbilândia e Todo Mundo Quase Morto não existiriam, pelo menos da mesma forma, se o filme de Sam Raimi não tivesse sido colocado no mundo.
O efeito da cultura cinematográfica, o estilo e assinatura que marcaram cada país graças ao cinema autoral, se transpõe também para o horror. Filme dirigido por Hideo Nakata em 1998, O Chamado consegue ter poesia, drama e romance, traços fortes na terra de Akira Kurosawa, em meio a uma história aterrorizante de uma mortífera maldição em cadeia. O sueco Deixe Ela Entrar (Tomas Alfredson, 2008) carrega diálogos existenciais e conflitos filosóficos quando se esconde por trás da trama vampiresca: vejo uma pitada de Ingmar Bergman por aqui e espero que vocês concordem comigo. A propósito, nenhuma das versões hollywoodianas destes filmes citados chega aos pés da densidade e beleza dos originais. Não existe uma fórmula certa para um bom horror, mas é certo que personalidade e estilo contam muito para que qualquer filme se destaque de outros do mesmo gênero. É possível encontrar um brilho diferente até em um galão de sangue falso (já assistiu a série Hannibal?).
Não cabem aqui todos os filmes de suspense/terror que acho fantásticos. Mas vários deles estão numa lista publicada pelo Indie Wire com os filmes do gênero tidos como preferidos pelos maiores nomes do cinema mundial (obrigada pela dica, querido editor!). Títulos que citei aqui aparecem ao lado de outros como Psicopata Americano (Mary Harron, 2000), O Iluminado (Stanley Kubrik, 1980) e Louca Obsessão (Rob Reiner, 1992).
Assino embaixo em um artigo de Dr. Arnold T. Blumberg publicado em 2016 no site Fandom, onde, quando analisando o que torna O Exorcista tão especial, ele diz que “ao fim de tudo, talvez de alguma forma, nossa cultura ainda está em uma cruzada em busca de respostas para os mistérios mais profundos, para procurar por conforto ou até salvação onde estamos mais acostumados em achá-las: não na igreja ou em casa, mas naquele cinema escuro”. Durmo na paz quando assisto documentários ou séries baseadas em histórias reais de serial killers mas morro de medo de olhar pro corredor do quarto quando assisto a um filme de terror com uma história bem improvável e sem documentação histórica alguma. O horror bem-feito nos tira de nossa zona de conforto ao passo em que é uma válvula de escape dos nossos terrores diários. O caráter impossível, porém tão bem executado, mescla-se à adrenalina e torna o enredo numa possibilidade remota. Espio entre os dedos, mas não me proíbo de amar um bom filme de terror.
texto publicado originalmente na edição impressa de 20 de novembro de 2019