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#69 Um novo clássico

publicado: 14/10/2020 00h02, última modificação: 03/11/2020 11h25
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Lembro-me do primeiro livro em inglês que li. Eu devia ter 13 ou 14 anos de idade quando ganhei de presente de uma amiga A Study in Scarlet (Um Estudo em Vermelho), o romance escrito por Arthur Conan Doyle em 1887 que apresentou ao mundo pela primeira vez o emblemático personagem Sherlock Holmes. Além do desafio de ler algo da literatura inglesa em seu idioma original pela primeira vez, lembro do meu encantamento com a história em si, os grandes mistérios e a origem de muitos clichês. Também pude vislumbrar a idealização autêntica dos personagens, digamos assim. Isso porque Holmes, Watson, Lestrade, Mycroft e Moriarty foram e são personagens retratados das mais diversas formas ao longo das décadas, até porque a coleção de Conan Doyle entrou para domínio público há um tempo. 

Porém, além da leitura, tendo assistido adaptações mais recentes televisivas como ElementarySherlock, eu não lembrava da existência da jovem Enola Holmes, personagem irmã do prodigioso Detetive e do intragável Mycroft, e protagonista do filme homônimo em cartaz na Netflix há poucos dias. Não por menos: na verdade, ela nunca existiu nos 50 e tantos contos originais de Arthur Conan Doyle. A jovem Enola foi criada pela autora Nancy Springer para a série de livros Os Mistérios de Enola Holmes (2006¨- 2010) e, após uma ótima reciptividade do público infanto-juvenil, o diretor Harry Bradbeer (Fleabag, Killing Eve) e o roteirista Jack Thorne (Skins, Shameless) foram escolhidos para comandar a adaptação fílmica para o serviço de streaming.

O filme traz um elenco forte: Millie Bobby Brown como protagonista (e produtora executiva, veja só); Helena Bonham Carter como Eudoria Holmes, Henry Cavill como um simpático até demais Sherlock e Sam Clafin no papel de Mycroft Holmes. A aventura da jovem Enola começa quando sua mãe foge de casa e deixa a filha de apenas 16 anos aos cuidados dos irmãos, recém chegados de viagem. Enola, ao contrário de seus parentes, tem certeza de que a mãe jamais a abandonaria e vira a detetive da vez, procurando por pistas e dicas do paradeiro de Eudoria. No meio da busca, a adolescente abre um parênteses para ajudar o rapaz-em-perigo Visconde Tewksbury, marquês de Basilwether. 

Alternando a vida em fuga pelo claro objetivo de reunir-se com a mãe, Enola coloca em prática uma valiosa lição ensinada por Eudoria: você é autossuficiente. Isso veio desde o seu batismo: "Enola" é um palíndromo de "alone", "sozinha" em inglês. Pensando no contexto do século 19, este era um tabu e tanto para mulheres, que tinham suas vidas ditadas do começo ao fim, despidas de direitos básicos como o voto. O sufrágio feminino, inclusive, tem um papel importante no filme ("você precisa fazer barulho se quiser ser ouvida", diz Eudoria para sua filha em certo ponto). 

Millie Bobby Brown é de fato a estrela do filme e consegue prender a atenção do público desde o começo. Sua presença imponente cria uma personagem naturalmente agradável, de espírito aventureiro e otimista. A direção de Harry Bardbeer tem papel fundamental nisto quando, por exemplo, temos a quebra da quarta parede, tão marcante em Fleabag, apresentada num formato acessível para o público infanto-juvenil. Enquanto Henry Cavill não me convenceu como Sherlock Holmes, o restante do casting caiu como uma luva. 

Enola Holmes é o tipo de filme para se sentar no sofá e curtir. Se estivéssemos ainda na geração de crianças e adolescentes espectadoras assíduas da "Sessão da Tarde", este seria um dos clássicos filmes pipoca dos século 21. Uma aventura que não fica atrás de filmes como GooniesMatilda, na minha opinião. É um daqueles filmes divertidos com uma mensagem bonita nas entrelinhas, sabe? Temos nele uma adolescente como protagonista de uma aventura, uma bela lição sobre solitude, feminismo e luta por direitos básicos e a importância de uma criação para além das expectativas de gênero, incluindo estímulos intelectuais e esportivos para jovens garotas. Claro, estamos falando de ser mulher nos anos 1800, mas se todas essas questões ainda nos tocam dois séculos depois, talvez ainda não estamos na linha de chegada. 

*coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de outubro de 2020.