(coluna originalmente publicada em 29 de maio de 2019)
Parece que a cada clipe lançado por LUCy (assim mesmo) sempre tem gente que brota para dizer que ela deveria voltar para o "lugar dela", o bom e velho forró que tanto faz bem. Há alguns dias, Lucy Alves soltou o vídeo da música ‘Mexe Mexe’. O clipe abusa das cores neons, batidas que remetem ao techno-brega, sensualidade e dança. E não tem nada de errado nisso.
Não é sobre gostar ou não do novo trabalho. É sobre a pressão para que ela seja algo que, supostamente, é pré-estabelecido. “volta pro forró” e “fica linda cantando forrozinho pé de serra” são alguns dos comentários no clipe lançado no YouTube. Convido você para um exercício, uma análise de um trecho do histórico de LUCy (não necessariamente apresentado na ordem cronológica dos fatos). Formou-se em música pela Universidade Federal da Paraíba. Passou pelo reggae. Foi para o forró. Também frevo. Até samba-enredo. Empunhou sanfona, violino, violão. Alcançou milhares, me arrisco a dizer milhões, de pessoas quando chegou na grande mídia. Chegou no pop. “O que a gente queria explorar na capa era que ali estou na minha essência nua e crua. Vai além do corpo. É minha alma nordestina. O álbum que está por vir fala de amor e estou nessa fase em que quero sensualizar mesmo”, disse a multi-instrumentista em entrevista ao Extra publicada no último dia 19. Mulher de fases (e não somos todas nós?).
E o pop surge como algo que incomoda. É como se a massificação fosse algo ruim, como se enxergar música como entretenimento fosse um pecado. Isso aconteceu recentemente com Alice Caymmi (por coincidência ou não, uma das compositoras de ‘Mexe Mexe’). O sobrenome já suga a atenção, não é? Ela vem de uma família de forte atuação na música, por várias gerações: Dorival. Danilo. Dori. Nana -- e é ela quem eu cito em seguida. A tia de Alice* deu uma polêmica entrevista à Folha de São Paulo em março deste ano, onde, em uma verborragia quase lunática, criticou a nova geração da família e foi sarcástica ao dizer que achava que Alice “ia dar mel, mas não deu”.
A jovem cantora de 29 anos replicou em seu Instagram: “durante aproximadamente dez anos de carreira me foi perguntado o que significa fazer parte da minha família de sangue. Falava-se em um peso, uma carga. Cantar não é nem nunca foi um peso pra mim, cantar me liberta. Porém a que custo consegui chegar até aqui? A custo de muita rejeição e por vezes violência, violência essa que perdura e se estende até a quem não tem nada a ver com isso”, disse.
Posso citar aqui três fortes nomes do forró que experimentaram e desagradaram muita gente que esperava por algo diferente. Dominguinhos e o Trio Nordestino incluíram na década de 1970 bateria, baixo elétrico e guitarra elétrica em suas canções, assim como o Luiz Gonzaga nos anos 1980 -- e nem por isso suas figuras perderam a majestade.
Já imaginou o quanto Elba Ramalho foi criticada quando deixou o teatro e foi para a música? Quando deu um tempo na bateria e assumiu os microfones? Quando foi do xote ao maracatu, do frevo ao baião, do forró à MPB, da MPB à uma fase que faz referências ao rock e manguebeat (ouça ‘Calcanhar’, parceria dela com a Barca dos Corações Partidos)?
Outro bom exercício é lembrar que a sanfona, por mais que seja um símbolo nordestino, não veio da nossa Região. Nem do nosso país. O acordeão como conhecemos foi fabricado na Alemanha em 1822 e só chegou no Brasil quando imigrantes europeus trouxeram a Concertina, como se chamava. Antes dela, a rabeca foi o primeiro instrumento melódico que entrou no forró, na mesma época em que o gênero incluía o pife brasileiro. Pela lógica da tradição, é mais contundente que a artista fique nesses dois instrumentos e nada mais. Radical? É a categoria em que eu coloco quem insiste em depositar suas próprias expectativas e vontades na carreira de LUCy.
Não querem fazer dela uma figura sensual, cosmopolita, diva pop. É ela quem quer isso e ela quem está mandando em sua própria criação. Inclusive, foi LUCy, em parceria com Alê Siqueira, quem fez o arranjo de 'Mexe Mexe' (que conta com uma batida feita em cima do som da zabumba, com a linha melódica do violino e da sanfona).
LUCy é uma mulher. LUCy é negra. LUCy é nordestina. E deve ser, além disso tudo, o que mais ela quiser, porque já bastam todas as caixas que nos colocam por causa do nosso DNA.