Vivi desde fins do último julho, a partir das Olimpíadas, deslembrado da condição de idoso, a não ser quando, a pé, ia à padaria ou à farmácia nas duas esquinas mais próximas. Apesar da pequena distância, os tropeços das calçadas arrastavam-me à dura realidade de uma cidade sem espírito público, ainda que a crônica lírica chegue a consagrá-la como cordial. Cidade cordial, assim refletida em sua historiografia e no espírito representado por Coriolano, Celso Mariz, Carlos Romero, Crispim, Martinho Moreira Franco, seguidos sem hiato pela nova ou jovem crônica dos dias de hoje. Foi preciso que a Prefeitura, em gestão ainda recente, nivelasse no cimento toda a Beira-Rio e toda a Epitácio para advertir ou lembrar um espaço como direito ou prerrogativa humana.
Mas voltemos às Olimpíadas. Sobre elas — digo de começo —, ninguém que eu tenha lido aqui ou nos alhures da Internet, se expressou melhor do que o jovem septuagenário Abelardo Jurema Filho, ainda com idade e ânimo emocional para ligar suas veias às de Simone Biles, campeã americana, e se curvarem, numa só alma, à mais bela de todas, a nossa Rebeca Andrade. E, nessa encarnação endovenosa, própria de Abelardo em tudo que faz, bailou com Rebeca em sua exibição nos aparelhos, aparou-a com seus braços após o salto no cavalo, remou com um, surfou com outro, correu, chorou e mergulhou na água mesmo sem saber nadar. Fez tudo que fiz desde que tomei o gol de Barbosa há exatos 74 anos, na Copa de 1950. De tal modo arrasador, que fechei os olhos à Copa seguinte, começando a assistir de longe a de 1958, de onde saí renovado até os dias de hoje, perdendo ou ganhando, sabendo suportar, já sem saber agora um só nome da seleção de milionários em dólares ou euros despachada das últimas competições.
Abelardo roubou-me a chance de exultar em linguagem de velho esse espetáculo de superação humana -- Gonzaga Rodrigues
Revelado na crônica ou na rotina de tudo que faz, o espírito ou ânimo de Abelardo Filho, tal como o pai, não me dá chance a pessimismo ou desesperança. Faz da festa a sua pauta principal, mas sem se isolar politicamente dos problemas sociais cruelmente enfrentados pela maioria. Seja do seu próprio espírito ou seja de herança, seu elitismo não implica cegueira. Como não foi cega a elite burguesa e culta agrupada por um rico estancieiro na implantação das reformas de base nessa confusa república brasileira vista pelo velho Rubem Braga.
Abelardo roubou-me a chance de exultar, em linguagem de velho, esse espetáculo de superação humana e participação universal inventada aos pés de Zeus mais de mil anos antes de Cristo. As meninas do Brasil mandando seus patrícios homens terem vergonha. As mulatas no pódio maior, num momento universal, essencialmente olímpico, tão bem descrito pelo garoto da Cesário Alvim, sensível ao espetáculo e a nossa realidade:
“Como nos versos de John Lennon” — cita ele — “os jogos demonstram que é possível imaginar um mundo onde não haja razão para matar ou morrer, sem guerras, sem fome e sem ganância, sem diferenças religiosas, étnicas ou descostumes, com todas as pessoas vivendo em paz. / E no Brasil dos nossos dias, onde a intolerância ainda se manifesta, dividindo famílias e destruindo amizades”.
Meu muito obrigado ao confrade Abelardo!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de agosto de 2024.