Estão me deixando para o fim sem levar em conta a vertigem dos dias na minha idade. Registra-se que o Censo na Paraíba alcança os 90 por cento. O bairro dos Expedicionários ou a rua onde moro ainda não foi visitada. E desejo constar com a minha própria voz, a mesma do agente recenseador no Censo de 1950.
Foi meu primeiro emprego às custas federais. A 40 centavos a casa, mansão ou casebre, e 20 centavos por pessoa. Peguei a parte mais enladeirada, a que bate de testa com as serras de Areia e Alagoa Grande. Serras de desfiladeiros abissais.
Não sei se naquele tempo já existia o PIB a medir a riqueza ou as variações monetárias do país saudosamente agrícola. Sei que havia bem mais roçados, sem comparação com o abandono a que é deixado o Brejo de hoje; eram pés de serra e beiras de rio e serrotes de pouca altura pontilhados de pequenas casas, todas com voz humana lá dentro para responder ao “ô de casa” do recenseador.
O censo era demográfico e não pude anotar o que vi de bicho de pena, cabra de leite, porco baé, e da cultura de subsistência que rodeava a casa sempre ao lado da mangueira ou jaqueira de porte. Quando a casa não aparecia, a fruteira de longe a denunciava.
O Brasil industrial que despontava no Sul comparecia no meu setor apenas com o querosene e a caixa de fósforo. O pano, o sabão eram da nossa indústria. O remédio do próprio mato.
Era um mundo efetivamente habitado, de uma casa se podia pedir sal à outra. Havia miséria, como sempre houve, mas em condições extremas ou de fome braba em massa como agora, nem pensar. O povo, mais de setenta por cento, vivia no sítio e do sítio. Era subalimentado, carente de proteína, de cálcio, quase sempre descorado, mas estou certo de que em melhores condições que os 33 milhões de famintos do moderníssimo país de hoje, sentando em Davos entre os dez mais ricos do mundo.
Todo o meu sítio veio parar na rua. Todo ele, sem distinção ecológica
Todo o meu sítio veio parar na rua. Todo ele, sem distinção ecológica, a grande maioria morando pendurada ladeira abaixo, para onde escorriam os antigos esgotos abertos. Crescemos em estrada, sim, em energia, água tratada, vida urbana e até em escola e em índices de alfabetização e formação superior. Mas não tivemos capacidade de riscar a fome do nosso mapa, salvo com alternativas como o Bolsa Família. E já não temos um Josué de Castro ou um Celso Furtado com uma nova consciência missionária. Antes de morrer, em entrevista com seus confrades e parceiros de estudos, Celso se saiu com uma resposta, concebida de longe, creio que das razões primeiras que inseminaram seu pensamento econômico. Ao se falar com espanto no avanço absurdo da fome e da miséria brasileiras, ele foi incisivo: “O capitalismo é a ganância humana institucionalizada. As civilizações baseadas na solidariedade, na cooperação, foram poucas e não sobreviveram. Quem sobreviveu foram as civilizações baseadas na força egoística, na afirmação pessoal, nas quais só se admite a cooperação quando há perigo para todos, numa guerra, por exemplo”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 29 de janeiro de 2023.