A ideia foi do jurisconsulto e historiador Humberto Mello, há algum tempo convidando-me a rever a Igreja da Guia, tão cercada e guardada pelos elementos da terra, do mar e do rio da deterioração do tempo e da insensibilidade do homem.
A Guia dos “Romeiros” de João Ramiro, um dos nossos bons poetas cineastas. A Guia de romeiros militantes como um Altimar de Alencar Pimentel, apegado de corpo e alma às tradições mais autênticas de religiosidade e de costumes dos altares e dos festejos das três raças forjadas a partir das margens de ingresso que a história oficial qualifica de civilizatório. A Guia que eu não soube ou não pude ver no meu melhor tempo ou mais frutífero.
Eu ainda não havia lido Clarival do Prado Valladares, mestre do barroco brasileiro, a quem a antiga Odebrecht confiou álbum precioso sobre o Nordeste monumental. Fui atraído ao insulamento da Guia simplesmente pelos apelos da religiosidade popular. E depois, bem depois, pelo documentário de João Ramiro. Se bem que algumas tomadas de João Córdula, um dos precursores do cinema paraibano, já me haviam levado aos arredores daquela grandeza insulada.
E viajei naquele tempo como quem vai pra Mamanguape, entrando pela estrada de Lucena, o caminho de acesso à igreja no mesmo barro arrastado pelas sandálias carmelitas ao sol de 1591.
Rezam os especialistas que o papel do barroco, concebido após a Reforma, era provocar esse êxtase
Que surpresa jamais desvanecida! Tanto que, trinta anos depois, dessa vez em companhia de Humberto Melo, desse amigo velho de 1951, voltei ao deslumbre não só diante da relíquia monumental, erguida num outeiro da América dos Tabajaras e Potiguares para a conversão indígena à fé cristã, mas já diante da lavra clássica, dita barroca, da pedra calcária que o rio Paraíba permitiu trazer das margens mansas do Sanhauá para serem esculpidas em frontais e altares da admiração universal. Sim, bem mais da universal que da devoção de casa. Não sei quantas vezes clamamos do jornal, pelo rádio, pela inclusão da Guia num programa de estradas.
Enfim, os olhos não bastavam. Um dia cheguei bem mais esclarecido a afagar com as mãos, sentir na pele miscigenada a geometria perfeita dos componentes da arcada, o corte e o alisado da pedra a justificarem a hierarquia artística do antigo mestre de obra. Mestres que vestiam batina e convertiam índios, também, em mestres perfeitos.
Rezam os especialistas que o papel do barroco, concebido após a Reforma, era provocar esse êxtase. Era converter pelo deslumbramento. O melhor de tudo é que não escolhe época nessa função.
Voltei, dessa última vez faltando pouco para a mesma disponibilidade de crença do meu ancestral mameluco diante desse “exemplo magno da arquitetura e escultura em cantaria, do mais insinuante barroco manuelino”. Palavras do grande Clarival Valadares, que se acompanhava de Odilon Ribeiro Coutinho, cuja contribuição à edição do álbum do Nordeste Monumental , acentua o autor: “(...) não se restringiu aos lugares a que nos levou, mas ao amplo conhecimento que nos trouxe abrindo-nos sua valiosa pinacoteca e biblioteca de edições seiscentistas utilizadas neste livro”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 21 de maio de 2023.